Não
deve haver quem diga ao presidente o que deveria ouvir em prol de seu governo e
do Brasil
Nós sabemos que a política, pela voz de seus agentes, não é o melhor veículo da verdade. A fidelidade à realidade não se apresenta como sua característica mais marcante. Assim é, sempre foi e será.
No
entanto, existem limites claros e bem definidos. Há uma ética também no campo
da mentira. Aquele que em seu nome infringe regras comezinhas da ética geral e
da própria política não pode usar a política como escudo de proteção.
É
mais ou menos como a isenção penal dada pela lei ao advogado que pratica os
crimes de injúria ou de difamação, na discussão da causa; ao crítico literário
que ofende numa crítica literária ou científica; ou ao funcionário público que
fornece uma informação ou apreciação ofensiva no cumprimento de um dever de
ofício.
Há
nesses casos, também, fronteiras que, se ultrapassadas, obrigam ou permitem a
punição pelo cometimento de crimes contra a honra. As ofensas do advogado devem
estar em sintonia com a causa e com a necessidade para a sua discussão. A
crítica literária não fica isenta de censura penal se extrapola o seu campo
natural e denota intenção meramente ofensiva. Quanto ao agente público, o mesmo
se dá, pois se as apreciações mostrarem o escopo de ofender, e não só de
informar, ele deverá responder pelos excessos.
Assim
é em relação à atividade política. O homem público perde a sua imunidade se
comete exageros e usa expressões infamantes. Nessas hipóteses, sim, ele perde a
sua imunidade.
Pois
bem, quanto à mentira, aceita-se mais a do cidadão comum do que a do político.
É plenamente aceitável a mentira folclórica, como a do pescador; aquela
proferida na mesa de um bar para o mentiroso se vangloriar de algum feito; a
mentira caridosa, com o objetivo de amenizar o sofrimento alheio. E não nos
devemos esquecer do chamado mitomaníaco, que mente para narrar fatos e
histórias imaginárias.
Dizia
que para o político mentir é mais grave do que para o homem comum. A ética para
alguém que ocupa cargo público, atua no Parlamento ou mesmo apenas exerce a
política é muito mais rigorosa. Ele representa, pelo menos em teoria, uma linha
de pensamento ideológico que agrega adeptos. Representa também, por meio do
voto, aqueles que nele confiaram. É gestor e depositário da coisa e dos
interesses públicos. Ainda no plano da teoria e do ideal, é portador da vontade
de toda a sociedade.
Políticos
podem mentir, talvez possam utilizar-se de mentirinhas veniais, sem
consequências. Mas jamais lhes é permitido mentir para engodar, para ludibriar,
para iludir todo um povo e outros povos.
A
mentira com tais objetivos é inconciliável com os graves e superiores encargos
que lhes são atribuídos pela Constituição da República, como representantes do
povo. Como a mentira se compatibiliza com a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, com o desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza
e com a promoção do bem de todos (artigo 3.º da Carta Magna)?
O
atual presidente da República tem nos brindado, neste um ano e tanto de
mandato, com a descrição de um país imaginário, sonhado, mas não existente, um
país criado pela sua imaginação. Uma descrição que agride a verdade e a nossa
inteligência e, eu diria com toda a ênfase, a nossa tolerância. Pergunto: até
quando?
Espanta-me
verificar não haver um seu assessor, militar ou civil, direto ou indireto, que
lhe diga: presidente, mentindo tanto, quando e se o senhor falar a verdade,
ninguém acreditará.
Não,
não deve haver ninguém que lhe diga o que ele deveria ouvir em prol do seu
governo e do Brasil. Se houvesse, não o deixariam colocar-nos como um país
perseguido pelos demais; negar a existência dos incêndios e do
desflorestamento; tecer loas à política econômica; glorificar a luta contra a
pandemia; indicar como responsáveis pela tragédia amazônica os índios e os
povos ribeirinhos. Essas e outras preciosidades, que formam um assustador rol
de acintes ao que vemos, ouvimos e sabemos, não seriam repetidas se ao seu lado
houvesse patriotas.
O
boneco Pinóquio, criado por seu dono, Gepeto, tinha um nariz que crescia à
medida que mentia. No nosso Pinóquio caboclo nada cresce, além da justa revolta
que provoca nos brasileiros dignos. E nem sequer temos um Gepeto para reclamar.
Ele surgiu assim e foi, para governar, fruto da escolha de milhões de
patrícios, que hoje devem estar amargando um doloroso arrependimento.
Em
seu pronunciamento para o mundo, ele ultrapassou todos os limites de uma
aceitação racional e de boa vontade. Não vou repetir as falácias. Não acredito
que haja algum seu adepto que nelas tenha acreditado. Podem também mentir
dizendo o contrário. Mas não é possível que tenham acreditado. Continuarão a
apoiá-lo se quiserem, e continuarão a ter todo o nosso desprezo. Estarão
apoiando a involução, o retrocesso, a marcha à ré de um país amado, mas
desencantado com os seus filhos. Bem, apenas com alguns deles.
*Advogado criminalista
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