As
vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de
cada um de nós
O
Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do
desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a
oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda
a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de
impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.
Fiquemos
no feminicídio,
depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão
dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane
Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz
de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo
de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.
É
chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e
do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também
ministro do STF Gilmar Mendes,
da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas
está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43%
deles – pasmem! – na frente dos filhos.
É,
evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se
assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas
viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual
e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista
e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a
sensação de posse, de proprietário e propriedade.
O
resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater
no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de
graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se
orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais
agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede
socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado.
Estarrecedor.
A
mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes
idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio
Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene,
morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram
mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo
feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.
Os
dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto,
jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até
porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer
ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e,
de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.
Ela
ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois,
cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar,
quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura,
é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As
vidas das mulheres importam.
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