sábado, 23 de outubro de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Fura-teto: para gastar e escapar da cadeia

O Globo

Não, não é verdade que será necessário furar o teto de gastos públicos em 2022 para financiar o programa Auxílio Brasil — com o pagamento de R$ 400 por mês para 14 ou até 17 milhões de famílias muito pobres.

Considere apenas um número. Por baixo, o governo federal terá algo como R$ 1,5 trilhão para gastos no ano que vem. Dinheiro para gastar onde quiser. Nessa montanha de recursos, não seria possível encontrar uns míseros R$ 50 bilhões para os mais pobres?

Sim, os números parecem meio chutados. Ocorre que este Orçamento federal é mesmo feito aos chutes e pedaladas. Na primeira versão, calculava-se inflação menor de 4% para 2022, crescimento robusto e juros baixos.

Mas, em consequência mesmo dos improvisos e das inconsistências geradas pelo governo Bolsonaro, o quadro mudou rapidamente ao longo de 2021. Há fatores externos, claro, como os efeitos da pandemia, mas o real se desvaloriza mais que as demais moedas de países emergentes; a inflação aqui sobe mais; os juros que os investidores cobram do Tesouro brasileiro, em títulos de dez anos, já passam de 12% anuais, também acima do padrão emergente; e, finalmente, o risco Brasil (o prêmio exigido pelos investidores para “comprar” Brasil) também é mais alto que o dos nossos pares.

Claramente, o problema está aqui e tem nome: o populismo escrachado do presidente Bolsonaro, cujo único objetivo é tentar se reeleger em 2022, não para fazer reformas ou privatizações ou qualquer outra mentira, mas simplesmente para não ser preso.

Populismo exige improvisação e mentiras. Por exemplo: o Auxílio Brasil não é um verdadeiro programa social, com foco e objetivos bem definidos, como era o Bolsa Família. Este tinha uma constatação e um fundamento, definidos lá atrás por técnicos do Banco Mundial.

A constatação: as famílias pobres permaneciam pobres porque as crianças tinham que ajudar os pais no trabalho e não podiam frequentar a escola. O fundamento: dar uma renda mínima às famílias, desde que mantivessem as crianças na escola e ainda cumprissem visitas regulares aos postos de saúde, especialmente para vacinação. Iniciado no Brasil nos anos 90, é um sucesso mundial.

O Auxílio Brasil é eleitoreiro. São R$ 400 por família só para superar o Bolsa Família de Lula; vale só para 2022, o ano eleitoral; não há contrapartidas definidas, o que significa que haverá grande corrupção, com o dinheiro distribuído a quem não precisa, como aconteceu com o auxílio emergencial.

Mesmo assim, como demonstrou o Instituto Fiscal Independente (IFI), seria possível pagar esses R$ 400 sem furar o teto, sem quebrar a regra fiscal básica criada em 2016.

E por que é preciso um teto de gastos, que engessa o gasto social? — dizem os chamados progressistas.

Porque o governo federal havia se transformado numa máquina de gastar cada vez mais dinheiro. Em 1997, o gasto público total equivalia a 14% do Produto Interno Bruto. Em 2016, já passava dos 20%.

E não se tem notícia de que os brasileiros vivessem num magnífico Estado de bem-estar social. O gasto público é desigual, os salários do funcionalismo vão do mínimo a um teto de quase 40 mínimos, frequentemente superado com gambiarras postas em lei.

A ideia do teto é simples: gasta-se num ano o mesmo aplicado no ano anterior, mais a inflação.

Não engessa nada. Não engessa as emendas parlamentares, o dinheiro que os parlamentares federais têm direito a gastar com suas clientelas. Hoje, a maior parte desse dinheiro é controlada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o chefe do Centrão.

Tudo considerado, eis o fato: resolveram pedalar as contas e furar o teto para salvar (e aumentar) as emendas e os fundos partidário e eleitoral. O resto é populismo para livrar Bolsonaro e seus filhos da cadeia.

A conta vai para a população e já está sendo paga na forma de mais inflação (com dólar nas alturas), mais juros, menos investimento e consumo, menos crescimento e mais desemprego.

 

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