sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Decisão do STF respeita caráter do jornalismo

O Globo

Ao divulgar acusações falsas de terceiros, veículo de imprensa só poderá ser punido se houver má-fé

Foi positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que fixou uma tese para os casos em que veículos de imprensa publicam em entrevistas declarações com acusações falsas. Embora ainda haja dúvida sobre como será interpretada, a tese consagra de forma clara a plena liberdade de informação e expressão, determinando que uma empresa jornalística só pode ser considerada responsável por declarações caluniosas de seus entrevistados se tiver sido deliberadamente negligente na tentativa de apurar os fatos.

A decisão foi tomada depois do caso em que o Diário de Pernambuco foi condenado a pagar indenização por ter publicado entrevista com uma acusação falsa sobre um militante político na ditadura militar. Ao longo do julgamento, os ministros sugeriram várias teses para definir em que condições um veículo deve ser considerado corresponsável por declarações que publica. Descartando ideias que trariam risco à liberdade de expressão ou poderiam inibir o trabalho da imprensa, o STF formou consenso em torno de uma tese que respeita as características intrínsecas do jornalismo.

A tese consensual, que deverá ser aplicada a pelo menos 119 outros casos, reitera a jurisprudência consagrada no Supremo sobre liberdade de expressão. Reafirma que a Constituição proíbe qualquer tipo de censura prévia, mas há possibilidade de responsabilização posterior pela publicação de informações “comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”. No caso de um entrevistado atribuir falsamente crime a terceiros, o veículo de comunicação só poderá ser considerado responsável se duas condições forem satisfeitas. Primeiro, se na época da publicação havia “indícios concretos” de que a acusação era falsa. Segundo, se ele tiver deixado de “observar o dever de cuidado” ao verificar os fatos.

A principal virtude da tese é contemplar as circunstâncias singulares da atividade jornalística. A imprensa tem o dever de divulgar informações no calor dos acontecimentos e, embora deva ser responsável pelo que publica, não está à prova de erros. Se fatos ou declarações de terceiros depois se revelam equivocados, a única justificativa para punição é ter havido negligência ou má-fé. É esse o espírito da tese.

Há dúvida, contudo, sobre como os tribunais interpretarão as condições impostas para configurar a responsabilidade dos veículos. As expressões “indícios concretos de falsidade” e “dever de cuidado” abrem margem a interpretações subjetivas. Na nota em que elogiou a tese, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) afirma esperar que no acórdão do julgamento “tais dúvidas sejam dirimidas, bem como outras situações” como entrevistas ao vivo.

Outra questão a resolver é a menção na tese à possibilidade de remoção de conteúdo de sites jornalísticos julgados culpados de violações. Embora possa haver casos extremos em que essa punição seja adequada, ela deve ser compreendida como último recurso, quando os demais remédios legais — como direito de resposta ou indenização — não estiverem disponíveis.

Apesar dessas ressalvas, é fundamental reconhecer o papel do Supremo na preservação das liberdades de informação e expressão, cruciais para a saúde de qualquer democracia. A postura dos ministros diante do tema não deixa dúvida de que continuarão a zelar por elas nos esclarecimentos que deverão constar do acórdão, cuja redação está a cargo do ministro Edson Fachin.

‘Jabutis’ em legislação do setor elétrico encarecem a conta de luz

O Globo

Iniciativas para favorecer térmicas e outros grupos de interesse tornarão a eletricidade mais cara ao consumidor

Têm se tornado frequentes as pressões nos bastidores do setor elétrico contra o interesse do consumidor. Em projetos recentes de geração de energia, bilhões têm sido extraídos das contas de luz para subsidiar este ou aquele segmento. O exemplo mais eloquente foi a inclusão do proverbial “jabuti das térmicas” na lei que autorizou a privatização da Eletrobras. Sem nenhum sentido econômico, ela tornou obrigatórios leilões de termelétricas a gás em regiões onde não há gás. A obrigação torna necessária a construção de gasodutos para abastecê-las, com custo transferido à população.

A ação mais recente dos grupos de pressão no setor de energia se faz sentir no projeto do marco regulatório para usinas eólicas offshore, necessário para garantir segurança jurídica à diversificação da matriz energética brasileira. Uma profusão de novos “jabutis” sem relação com o tema incluídos no projeto aprovado na Câmara custará pelo menos R$ 27 bilhões por ano à conta de luz dos brasileiros, pelos cálculos da Abrace, associação que congrega grandes consumidores de energia.

Entre os “jabutis”, estão subsídios à energia solar, repasse de custos ao mercado livre (mecanismo de negociação por meio do qual consumidores escolhem seu fornecedor), mudanças na Conta de Desenvolvimento Energético, com encarecimento da energia para Sudeste e Nordeste e, naturalmente, incentivos a usinas térmicas. A lei de privatização da Eletrobras fixou em 8 gigawatts a reserva de mercado para térmicas a gás. Diante da baixa adesão aos leilões, a ideia é suprir parte dessa energia com hidrelétricas de pequeno porte, de custo operacional mais alto. Outro “jabuti” acaba com o teto antes estabelecido para o preço da energia das termelétricas, numa tentativa de torná-las mais rentáveis.

Por fim, o projeto aprovado favorece térmicas a carvão com a extensão até 2050 do prazo em que será permitido contratá-las. O carvão, vale lembrar, é a forma de gerar energia que mais contribui para o aquecimento global. Negociações internacionais procuram bani-lo da matriz energética planetária, e no Brasil seu uso é desnecessário.

As pressões não se limitam ao projeto que seguiu ao Senado. Na semana passada, o blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO, revelou a tentativa de transportar mais um “jabuti” para uma Medida Provisória de incentivo a empresas de energias renováveis. A emenda à MP retirava o custo de transporte do preço da energia oferecida pelas termelétricas, de modo a torná-las mais competitivas. Com a revelação da manobra, o Palácio do Planalto cancelou a solenidade de assinatura da MP.

Um país como o Brasil precisa de uma matriz energética limpa e diversificada, de modo a garantir a queda nas emissões de gases de efeito estufa e a segurança energética necessária ao crescimento econômico futuro. As térmicas têm seu papel nessa matriz, mas todo empreendimento — como a nova rede de gasodutos necessária para torná-las viáveis — precisa se justificar economicamente num mercado sem distorções. Do contrário, todo custo passará às contas de luz.

Inflação global acelera seu ritmo de queda

Valor Econômico

Há bons motivos para acreditar que a inflação e os juros não serão tão baixos quanto antes nos países avançados

A inflação nos Estados Unidos e Europa está caindo rapidamente, depois de mostrar resistência às maiores altas de juros em décadas nos dois lados do Atlântico. Dados de um par de meses não farão os Bancos Centrais desarmarem suas defesas, mas as ressalvas de que não hesitarão em voltar a elevar os juros, se necessário, feitas explicitamente pelo Federal Reserve e pelo Banco Central Europeu (BCE), tendem a ser tornar pro forma. Os investidores voltaram a prever o afrouxamento monetário já no primeiro semestre de 2024. Há muitas incertezas e margens para surpresas, mas os juros parecem ter chegado ao pico no atual ciclo de aperto e seu caminho agora tende a uma só direção - para baixo.

Com a economia se retraindo significativamente, a zona do euro teve brusco declínio da inflação em 12 meses em novembro, 2,4%, já não muito distante da meta do BCE, a de cifra próxima, mas inferior, a 2%. A previsão de crescimento para o ano, de 0,6%, indica que o bloco escapará da recessão, mas o esfriamento das atividades deu nova cadência à queda dos preços. Em agosto, o índice de preços ao consumidor ao ano foi de 5,2%. É possível que haja algum repique na inflação até o fim do ano, com a chegada do inverno e o aumento dos preços da energia. Ainda assim, a Europa livrou-se mais rapidamente do que o previsto da dependência forte do gás russo, após explosão de custos com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

A presidente do BCE, Christine Lagarde, disse, porém, que ainda é muito cedo para “cantar vitória” e que está preocupada com a pressão salarial, segundo ela uma das fontes de impulso inflacionário atual. A curva de juros futuros indica que os investidores, no entanto, pensam diferente - para eles, o BCE começará a cortar a taxa de 4% em abril. Alguns membros do BCE, como Fabio Panetta, presidente do BC italiano, já passaram a advertir que a manutenção dos juros altos poderá provocar “danos desnecessários” às atividades econômicas.

A tensão entre os dois momentos, o de aperto monetário e o de sua distensão, são mais acentuadas nos EUA. A economia cresceu a um ritmo quase chinês no terceiro trimestre, 5,2%, indicando um vigor que talvez recomendasse novas doses de juros. Mas os gastos com o consumo estão se reduzindo, assim como o apertado mercado de trabalho dá sinais de perda de fôlego. A previsão da OCDE, divulgada anteontem, aponta um freio forte no crescimento, de 1,5% no ano que vem.

Os preços estão se adequando ao figurino de perda de ritmo da economia e custo do dinheiro elevado. Os gastos pessoais de consumo em outubro recuaram para 3%, ante 3,4% em setembro. O núcleo desse indicador, o preferido do Fed, recuou de 3,7% para 3,5%, ainda distante da meta de 2% do Banco Central. O livro Bege do Fed, divulgado esta semana, indicou atividade estagnada ou fraca na maior parte dos distritos em que o banco atua em novembro e enfraquecimento das pressões salariais.

As condições financeiras nos países avançados afrouxaram, com os investidores estimando a reversão do ciclo dos juros já em março. Sinais de membros mais ortodoxos do Fed de que novos aumentos provavelmente não ocorrerão deram força ao otimismo, que derrubou os títulos de 10 anos do Tesouro da fronteira dos 5% em outubro para 4,26% agora. É um espaço de tempo muito curto para uma reviravolta do Fed, porém possível. Nos países ricos, a média móvel trimestral dessazonalizada dos preços, anualizada, indica que os índices de inflação já se aproximaram bastante das metas (Chris Giles, FT, 7 de novembro).

A manutenção dos juros e a perspectiva de que não subirão mais quebraram a tendência de alta do dólar e devolveram uma parte do apetite pelo risco dos investidores em mercados emergentes. O recuo do dólar (6,87% no ano) em relação ao real tem sido um coadjuvante importante na queda do IPCA, que fechará dentro dos intervalos da banda da meta de inflação, algo antes improvável.

A aposta preponderante dos investidores no mercado de derivativos é de valorização do real. Ao contrário de 2021, quando preços de commodities em alta caminharam junto com dólar mais caro (movimento inusual), fazendo a inflação romper os 10%, agora commodities em baixa, com o dólar na mesma direção, contribuem para reduzir os preços domésticos. Previsões da OCDE estimam inflação de 3,2% em 2024, nível mais otimista que o do próprio cenário de referência do BC brasileiro (3,6%) e do boletim Focus (3,9%).

Se há alguma clareza sobre o curto prazo, ela se embaça em relação ao longo prazo. Há bons motivos para acreditar que a inflação e os juros não serão tão baixos quanto antes nos países avançados, e que as taxas seguirão altas por um bom tempo. Pressões globais, como a transição verde, o envelhecimento populacional e a cisão entre China e EUA, tendem a aumentar custos e elevar os déficits fiscais. Para o Brasil, o acesso à poupança externa tenderá a ficar mais caro e menos abundante, mas sem mudanças drásticas em uma perspectiva de crescimento que se mantém preocupantemente baixa.

Capítulo sombrio

Folha de S. Paulo

Contra a própria história, STF abre brecha para ataque à liberdade de informação

Capitaneados por Alexandre de Moraes, os atuais ministros do Supremo Tribunal Federal mostraram-se dispostos, na última quarta-feira (29), a inaugurar um capítulo sombrio na história da corte.

Como se ignorassem que o STF tem longa tradição na defesa inequívoca da liberdade de imprensa, resolveram flexibilizá-la; como se desconhecessem a relação vital entre democracia e liberdade de informação jornalística, cercearam esta e arriscaram aquela; como se pudessem desconsiderar a Constituição, deram as costas para ela.

Não são outras as consequências do julgamento sobre um pedido de indenização feito ao Diário de Pernambuco por conteúdo publicado em 1995, no qual o STF deliberou que o veículo de comunicação pode ser responsabilizado na esfera civil pelas declarações de um entrevistado que impute falsamente prática de crime a terceiro.

O que seria apenas uma decisão absurda tomada por um órgão judicial adquiriu outra dimensão quando o Supremo, sem necessidade, optou por extrapolar do caso concreto para o universal, fixando uma tese geral a ser utilizada como baliza em situações semelhantes.

De acordo com o STF, na hipótese de um entrevistado atribuir a outrem a prática de um crime, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada se, "à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação" e, ao mesmo tempo, o veículo não tiver observado "o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos".

Ainda que a dupla condicionante tenha em tese o condão de demonstrar quão excepcionais devem ser as circunstâncias para possibilitar a sanção, seu efeito pode ser o oposto: a nova regra abre mais brechas do que fecha e deixa a imprensa mais vulnerável.

Os pequenos veículos, em particular, sem recursos para manter um departamento jurídico, ficarão à mercê do que juízes entenderão como "indício concreto" e "dever de cuidado" —um prejuízo de monta para a liberdade jornalística, sobretudo quando se conhece o grau de promiscuidade entre poderosos país afora.

Mesmo a chamada grande mídia, em tese mais capacitada para enfrentar o assédio judicial, poderá vir a exercer alguma autocensura, sacrificando a circulação da informação para evitar arbitrariedades.

Mede-se o tamanho desse golpe pela régua da Constituição, que rechaça qualquer embaraço à "plena liberdade de informação jornalística". Repita-se, por ênfase: plena.

Embora o julgamento tenha sido encerrado, e a tese geral, estabelecida, ainda há tempo de minimizar seus efeitos mais nocivos. É imperioso que o relator do acórdão, Edson Fachin, afaste ambiguidades da decisão, dirima dúvidas e esclareça se o STF continua defensor intransigente da liberdade de imprensa ou se mudou de lado.

O legado de Kissinger

Folha de S. Paulo

Para o bem e o mal, diplomata do pós-guerra ajudou a moldar o mundo do século 20

Gênio da diplomacia. Manipulador inescrupuloso. Maestro da Guerra Fria e pai da disputa geopolítica entre China e Estados Unidos. Criminoso responsável por ditaduras e políticas de extermínio.

Morto aos 100 anos, Heinz Alfred Kissinger era um dos poucos homens que podiam receber todas as qualificações acima. Ao mesmo tempo, como gostava de dizer, ser vilão e herói no fluxo histórico.

Kissinger, um judeu alemão cuja família fugiu do nazismo, tornou-se o americano Henry e avançou uma brilhante carreira acadêmica.

No seu doutorado em Harvard, publicado em 1957 como livro sobre a paz do Congresso de Viena no século 19, encontra-se seu modelo presumido: o príncipe austríaco Klemens von Metternich, artífice do longo período de relativa estabilidade europeia pós-Napoleão.

O nobre, escreveu Kissinger, destacou-se pela manipulação e pela sutileza. Da mesma forma, como acadêmico, diplomata, alto funcionário e consultor milionário, foi ouvido por 12 presidentes americanos, notavelmente o antissemita Richard Nixon, a quem desprezava.

E não só, como a recente visita do "velho amigo da China" a Xi Jinping provou. O país asiático é talvez o zênite da carreira de Kissinger. Como conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado, estabeleceu os laços que levaram Pequim a ser o chão de fábrica do Ocidente por várias décadas.

Como a paz de Metternich desaguou no primeiro conflito mundial cem anos depois, o objetivo inicial de Kissinger com a China, de minar o poderio soviético nos anos 1970, gestou a segunda Guerra Fria entre Pequim e Washington.

A lista de eventos do fim do século 20 com a mão do diplomata é infindável, como a aceitação enrustida da derrota no Vietnã que lhe rendeu um Nobel da Paz e a instalação dos EUA como vetor central no Oriente Médio por décadas.

Aqui, as tintas do legado se tornam sombrias, quando não enrubescem pelo sangue derramado de 50 mil cambodjanos mortos numa campanha aérea brutal e ilegal dos EUA, ou das vítimas da ditadura de Augusto Pinochet, cuja ascensão patrocinou em 1973 no Chile.

Como todo colosso, Kissinger tinha fraturas e áreas de sombra. Defini-lo só por uma coisa ou outra é negar a complexidade inerente às grandes figuras históricas.

O STF e imprensa responsável

O Estado de S. Paulo

Ao fixar parâmetros para que uma empresa jornalística possa ser punida por calúnia praticada por entrevistado, STF trata menos da liberdade e mais da responsabilidade da imprensa

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu anteontem que uma empresa jornalística que publicar entrevista na qual o entrevistado atribui falsamente a terceiros a prática de um crime só pode ser responsabilizada civilmente se ficar provado que, “na época da divulgação da entrevista, já se sabia, por indícios concretos, que a acusação era falsa e a empresa não cumpriu o dever de cuidado de verificar a veracidade dos fatos e de divulgar que a acusação era controvertida”.

O caso em questão envolve o jornal Diário de Pernambuco, que em 1995 publicou uma entrevista na qual o delegado Wandenkolk Wanderley disse que o ex-deputado petista Ricardo Zarattini Filho participou de um atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, em 1966. O ex-deputado entrou na Justiça contra o jornal, alegando que a informação era sabidamente falsa na ocasião e que não lhe foi dada a oportunidade de contestá-la. Derrotado em primeira instância, Zarattini recorreu e ganhou a causa no Superior Tribunal de Justiça. Mas o Diário de Pernambuco entrou com recurso no Supremo, sob o argumento de que foi condenado apenas porque publicou uma entrevista, e que por isso a punição representava cerceamento da liberdade de imprensa.

O Supremo já havia rejeitado o recurso do jornal, mas decidiu fixar uma tese para casos semelhantes no futuro, o que gerou grande apreensão entre as empresas jornalísticas, dado o risco de facilitara punição de veículos em razão da mera publicação de entrevistas que contenham acusações.

O ideal ser iaque o Supremo não fixasse tese alguma– e agrande variedade de teses propostas pelos ministros mostrou a dificuldade de fazê-lo, ante o fato óbvio de que não cabe ao Judiciário punir o mau jornalismo. Mas o resultado, afinal, teve o mérito de deixar claro que a liberdade de imprensa é fundamento inegociável da democracia eque a punição, se houver, deve ser excepcional.

Ainda assim, salta aos olhos a vagueza dos parâmetros estabelecidos pelo Supremo, o que pode dar margem a interpretações que, no limite, dificultem o trabalho da imprensa. Ora, o que são afinal os “indícios concretos” de que fala a decisão do Supremo? Como cobrar que empresas jornalísticas verifiquem a “veracidade dos fatos” diante de acusações que talvez nem sejam ainda objeto de investigação? E como lidar com entrevistas ao vivo?

A Associação Nacional dos Jornais (ANJ) ressaltou essas questões cruciais em sua manifestação a respeito da decisão do Supremo. Ao mesmo tempo que elogiou ofato d eque atese foi“u ma vanç opositivo diante d agrave a me açaà liberdade de imprensa”, a ANJ disse esperar “que, na elaboração e publicação do Acórdão de Inteiro Teor sobre o julgamento, tais dúvidas sejam dirimidas, bem como outras situações não explicitadas, como no caso de entrevistas ao vivo, sempre em favor da preservação do preceito constitucional da liberdade de imprensa”.

A rigor, porém, a decisão do STF diz menos sobre a liberdade e muito mais sobre a responsabilidade da imprensa. Nesse sentido, a Corte nem precisaria ter se manifestado sobre o assunto. “Dever de cuidado” é algo natural para empresas jornalísticas éticas e responsáveis. Para jornalistas que se pautam pela ética profissional, a autocensura está muito longe de ser entendida como uma limitação ao exercício da profissão. É apenas uma das muitas manifestações do tal dever de cuidado, a práxis elementar de jamais publicar aquilo que não possa ser devidamente contextualizado e ponderado.

Obviamente, as empresas jornalísticas, como quaisquer outras, não podem tudo. São rigorosamente responsáveis pelo que publicam e, quando erram, devem ser responsabilizadas. Aliás, não se pode nem falar propriamente em jornalismo quando não está presente – e evidente para a sociedade – que houve zelo no trato de uma informação levada a público.

Atese do Supremo, com todos os seus problemas, afinal serve para valorizar o jornalismo que respeita os mais elevados padrões éticos e profissionais – valores ainda mais relevantes no momento em que a curadoria responsável de informações é tão necessária para a saúde da democracia.

O incrível caso da estatal Ceitec

O Estado de S. Paulo

Ao reativar empresa inútil, Lula atesta ser incapaz de aprender com seus erros. Pior: movido pela inabalável fé em si mesmo, insiste em repeti-los à espera de resultados diferentes

O presidente Lula da Silva reverteu, por meio de decreto, a liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). A empresa foi incluída no ambicioso e fracassado programa de desestatizações do governo Jair Bolsonaro, que previa privatizar, fundir e fechar dezenas de empresas públicas federais. Como muitos outros, o processo da Ceitec nunca foi concluído, o que permitiu à administração petista ressuscitar a moribunda e deficitária estatal.

O caso da Ceitec é exemplar sob vários aspectos. Ela foi uma das mais de 40 empresas públicas federais criadas durante as administrações petistas. Nasceu com a promessa de se tornar uma grande produtora de chips e inserir o País no disputado mapa mundial do setor de alta tecnologia. Nada menos.

Desde 2006, a Ceitec recebeu bilhões em investimentos do Tesouro Nacional, via subvenções e adiantamentos para futuro aumento de capital. Esses recursos nunca colocaram a empresa em condições para competir com as gigantes internacionais, tampouco a impediram de registrar prejuízos durante toda a sua existência.

A Ceitec nasceu com maquinário ultrapassado, oriundo de doações. Ao longo dos anos, a empresa não conseguiu nem mesmo viabilizar a venda de chips para passaportes, cuja caderneta é produzida pela também estatal Casa da Moeda. Fechar a companhia seria um caminho natural, respaldado pela própria Constituição, que restringe a exploração direta de atividade econômica pelo Estado aos imperativos de segurança nacional e relevante interesse coletivo. Chips, por óbvio, nunca se encaixaram nessa descrição.

Assim teria sido, não fossem as trapalhadas cometidas pelo próprio governo Bolsonaro na condução desse processo. Diversas fragilidades, como o atropelo de prazos e o menosprezo ao cumprimento de etapas burocráticas inerentes ao setor público, entre as quais a apresentação de estudos para subsidiar o fechamento da empresa, levaram o Tribunal de Contas da União (TCU) a interromper a liquidação em setembro de 2021.

Focado unicamente na reeleição e sem qualquer compromisso real com a agenda econômica, Bolsonaro nunca conseguiu destravar o processo na Corte de Contas. Não se sabe se houve desinteresse ou incompetência por parte de sua equipe, mas o certo é que essa inação garantiu as condições necessárias para o atual governo reverter a liquidação assim que tomou posse.

O que fez Lula acreditar que a Ceitec merecia receber uma segunda chance? Isso é algo que o governo teria a obrigação de explicar. Afinal, se a própria concepção da Ceitec não se justificou tecnicamente, recriá-la depois de tantos anos de prejuízo não tem o menor cabimento, a não ser para reforçar o discurso estatizante do governo Lula.

Não se pode utilizar a covid-19 como pretexto para reativá-la. A pandemia desorganizou as cadeias produtivas e evidenciou uma crise mundial na produção de chips, mas as recentes tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China no mercado de semicondutores deixam claro que a disputa vai muito além da mera liderança mundial no campo da tecnologia.

Modernizar a Ceitec, por óbvio, requer investimentos bilionários, com os quais o deficitário Estado brasileiro não tem a menor condição de arcar. Além de recursos públicos, este é um setor que depende de capital humano, algo que a Ceitec tampouco conseguiu preservar. Com o início da liquidação, a maioria dos empregados migrou para a concorrência, seja no Brasil ou no exterior.

Ressuscitar a Ceitec, portanto, é uma decisão com o potencial de drenar bilhões em recursos públicos nos próximos anos, sem qualquer garantia de retorno em receitas, inovação ou produtividade para o País.

São muitas as necessidades, as carências e as prioridades do Estado brasileiro em educação, ciência e tecnologia, sem as quais o crescimento e o desenvolvimento econômico continuarão a ser um sonho distante. Recriar a Ceitec certamente não faz parte delas. Com a reativação da estatal inútil e deficitária, Lula atesta ser incapaz de aprender com seus próprios erros. Pior: movido pela inabalável fé em si mesmo, insiste em repeti-los à espera de resultados diferentes.

Kissinger, o realista

O Estado de S. Paulo

O controvertido secretário de Estado norte-americano ajudou a moldar o século 20

Se a diplomacia impediu o desborde da guerra fria para um conflito nuclear global, como é fato, o esforço bem-sucedido deveu-se sobretudo a Henry Kissinger. Arquiteto da détente entre Estados Unidos e União Soviética, no início dos anos 1970, Kissinger morreu aos 100 anos no último dia 29 legando à humanidade a mais profunda e lúcida compreensão sobre as relações internacionais ao longo da história contemporânea e sua exitosa, embora altamente controversa, estratégia de consolidação da Pax Americana. O “bruxo” jamais passou ileso à crítica fundamentada. Mas será indevido omitir sua dimensão como estadista e sua influência decisiva no jogo diplomático até seus últimos dias de vida.

Conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado dos Estados Unidos no período de 1969 a 1977, sob os presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, Kissinger moveu-se com habilidade notável em um capítulo potencialmente incendiário da guerra fria. Em especial, ao costurar em conversas secretas o surpreendente encontro em Pequim entre Nixon e Mao Tsé-tung, em 1972. À distensão das relações entre a potência ocidental e a “China Vermelha” da época somaram-se a exitosa tática de isolamento de Moscou, a negociação do primeiro acordo bilateral de contenção de ameaças nucleares e os tratados de paz com o Vietnã – que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz de 1973 e, aos EUA, uma saída menos desonrosa de sua guerra na Ásia.

Kissinger jogava com habilidade em diferentes tabuleiros, sem jamais admitir desvios em seu objetivo de consolidar uma hegemonia de longo prazo dos EUA. Sobretudo, não abria mão de sua doutrina ultrarrealista, cujos conceitos estão refletidos nas suas obras-primas Diplomacia e Sobre a China. Descrito como arrogante, temperamental e paranoico, acumulou acusações por crimes contra a humanidade e passou por cima de valores democráticos do país que o acolheu, ainda menino, como refugiado da perseguição da Alemanha nazista aos judeus.

As centenas de milhares de vítimas dos bombardeios no Camboja e no Paquistão do Leste (Bangladesh), a tomada do Timor Leste pela Indonésia e a derrubada do governo chileno de Salvador Allende impregnam sua biografia, na qual se inclui o apoio da Casa Branca às ditaduras da América Sul, entre as quais a do Brasil. À revista The Atlantic, em 2016, o ex-presidente Barack Obama afirmou que Nixon e Kissinger “deixaram para trás o caos, massacres e governos autoritários”. “De que maneira aquela estratégia promoveu nossos interesses?”, questionou Obama, um dos raros líderes americanos impermeáveis aos conselhos de Kissinger.

A indagação continua em aberto. A lucidez de Kissinger sobre o cenário do pós-guerra fria jamais foi desprezada, como prova seu recente conselho a Washington para buscar com a China o melhor diálogo sobre a inteligência artificial. Vale a pena registrar um de seus últimos alertas, dado à The Economist em maio passado: “Estamos em um mundo de destrutividade sem precedentes”.

Autistas e seus cuidadores

Correio Braziliense

As condições de saúde mental e física e do dia a dia das pessoas autistas, 49% afirmam que possuem alguma doença crônica ou secundária que foi identificada junto ao diagnóstico de Transtorno de Espectro Autista (TEA)

O vertiginoso aumento de diagnósticos de autismo — tanto precoces quanto tardios — tem contribuído para que o tema seja um dos mais discutidos entre autoridades de saúde, famílias e celebridades. No entanto, o Brasil encontra uma profunda ausência de informações e dados atualizados sobre a condição. Prova disso é que um dos últimos dados de que se tem notícia sobre o tema é de 2010, e refere-se a um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que cita que o Brasil teria, naquele ano, aproximadamente 2 milhões de pessoas com autismo. Imaginemos esse número nos dias de hoje, 13 anos depois.

Recentemente, estudo desenvolvido pela healthtech Genial Care em parceria com a Tismoo.me (plataforma de saúde destinada a condições de neurodesenvolvimento) fez um panorama com informações relevantes sobre pessoas autistas e suas famílias. O Retratos do Autismo no Brasil em 2023, lançado em novembro, contou com a participação de mais de 2 mil pessoas autistas ou cuidadoras de pessoas nessa condição.

O relatório revela que a grande maioria dos cuidadores está profundamente preocupada com o futuro a longo prazo da criança com autismo (79%). A preocupação, inclusive, ultrapassa barreiras geográficas, etárias e de renda. Sobre as condições de saúde mental e física e do dia a dia das pessoas autistas, 49% afirmam que possuem alguma doença crônica ou secundária que foi identificada junto ao diagnóstico de Transtorno de Espectro Autista (TEA), e 50% afirmam não ter acesso a recursos e suportes adequados para as suas necessidades.

Segundo a literatura científica, a saúde da pessoa autista é mais vulnerável que da população em geral, sobretudo em doenças comuns como questões gastrointestinais (16%), doenças respiratórias (10%) e obesidade (6%), que aparecem nessa ordem entre as mais prevalentes em autistas.

As outras duas principais dificuldades citadas pelos cuidadores no estudo são: arcar com os custos do tratamento (73%) e encontrar tempo para descanso e para cuidar de si mesmo (68%). O alinhamento entre os sistemas de saúde e educação é imprescindível, com a capacitação de pessoas com autismo. É fundamental rever práticas como terapias intensivas e salas de aula separadas, pois essas não promovem a autonomia desejada, mesmo que seja uma abordagem bem intencionada.

Fato é que o aumento no diagnóstico de pessoas com autismo se deve, em grande parte, aos avanços da ciência, que tem se dedicado ao estudo e à compreensão desse transtorno. Além disso, graças aos progressos científicos, informações relacionadas ao Transtorno do Espectro Autista tornaram-se mais acessíveis.

Mas permanece a incerteza sobre o futuro a longo prazo das crianças autistas, que passa por diversos aspectos, como desenvolvimento do indivíduo, inclusão, como lidar com comportamentos desafiadores e apoio emocional, entre outros. Por isso, as intervenções multidisciplinares e a orientação parental são fundamentais nesse aspecto. Além disso, o setor de saúde deve ser ativo, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de crianças autistas e suas famílias. Se a sociedade não estiver disposta a olhar para o autismo como uma questão social ampla, de nada ou quase nada vai adiantar o esforço dos cuidadores, também merecedores de todo o cuidado. 

 

 

 

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