terça-feira, 16 de julho de 2024

Maria Cristina Fernandes - Trump se vale da arma da ambiguidade

Valor Econômico

O homem que potencializou a mentira no discurso político contemporâneo agora tem a verdade a seu favor

Nem que reúna todos os gênios da comunicação política, a convenção republicana será capaz de reproduzir a cena do atentado contra o ex-presidente americano, Donald Trump: o punho ergue-se acima do rosto ensanguentado, os dentes mordem os lábios para fazer soar “fight” (“lutem”), a bandeira americana está hasteada à direita e a agente do serviço secreto com algemas presas no seu cinto o cerca não para prender o condenado por 34 crimes mas protegê-lo de um atirador.

Toda a cena foi emoldurada por um céu azul sem nuvens sobre uma plateia de onde saiu a única vítima fatal, um bombeiro que se jogou sobre as filhas para protegê-las. O inimigo mirou Trump mas atingiu a família americana. A plateia reagiu instantaneamente gritando a sigla, em inglês, de Estados Unidos da América, USA.

O homem que potencializou a mentira no discurso político contemporâneo agora tem a verdade a seu favor. A cena foi captada por Evan Vucci, da AP. Sua sequência daria um filme. A bala interrompeu a fala de Trump: “Veja o que acontece...”. Referia-se a um gráfico com a escalada de imigrantes no país do pleno emprego. Ao virar o rosto para mostrá-lo, permitiu que a bala apenas raspasse sua orelha.

O poder da cena foi definido pelo próprio alvo ao “New York Post” durante o voo que, na noite do domingo, o levou a Milwaukee, no Estado de Wisconsin onde acontece a convenção: “Normalmente você tem que morrer para produzir uma foto icônica. E eu não morri.” O sobrevivente disse que jogou fora o discurso “muito duro” que havia preparado sobre “corrupção” no governo Biden e que, nesta quinta-feira, está disposto a unir o país. A começar pela defesa da própria inocência.

Na véspera, tinha reagido ao atentado incitando três vezes a plateia a lutar. Agora fala como alguém que, depois de ter tido a proteção divina para sobreviver a este atentado, não pode ser subjugado à lei dos homens. Descreveu um presidente Joe Biden “muito gentil” no telefonema que lhe havia feito e disse “ter ouvido” que o Departamento de Justiça retiraria suas acusações contra si.

O discurso da união do país lhe seria útil na condição de condenado e candidato. E também poderia segurar a escalada de violência nos quatro meses que restam até a eleição, mas pela escolha do companheiro de chapa de Trump é sinal de que a aposta de união é retórica. O senador por Ohio, JD Vance, puxou a fila dos que culpam a retórica de Biden de que Trump é um “fascista autoritário que deve ser detido a todo custo” pelo atentado.

Vance é autor de “Hillbilly Elegy”, que pontificou na lista dos mais vendidos do “The New York Times” e originou o filme “Era uma vez um sonho” (2020) sobre uma família branca que ascende para a classe média carregando todos os traumas de abusos, pobreza e alcoolismo em Ohio, Estado do “cinturão da Ferrugem”, como a Pensilvânia do atentado. Foi um crítico ácido do trumpismo que aderiu ao partido Republicano com a retórica de que só o bloqueio das fronteiras diminuirá a oferta abundante de mão de obra e elevará o investimento em produtividade e o salário dos americanos.

Não é o único sinal de que a pacificação está longe. Na entrevista do domingo, Trump relatou que o médico do pronto-socorro lhe disse nunca ter visto alguém sobreviver depois de ser ferido por um AR-15. Prefere tratar sua sobrevivência como milagre a encarar a tragédia da posse de armas no seu país. Estatísticas compiladas pela Universidade de Georgetown mostram que 24,6 milhões são proprietários do rifle mais popular do país. Como detentores de armas não ficam numa só, calcula-se que o arsenal de AR-15 nos EUA seja de 44 milhões de unidades.

Se o atirador fosse negro ou muçulmano suas comunidades estariam carregando o estigma desta tentativa de assassinato. Como é um jovem branco e subempregado de um Estado do “cinturão da ferrugem”, é tratado como um “lobo solitário” e não como produto da cultura do ódio cultivado num país de livre acesso a armas.

A ambiguidade do Trump “paz e amor” passa ainda pela mudança de sua visão sobre o serviço secreto. Enquanto propõe uma condecoração dos agentes do que se jogaram sobre seu corpo para protegê-lo, lideranças republicanas já trabalham por uma investigação sobre sua atuação no Congresso americano dadas as evidências de que houve alertas da população sobre a presença do atirador no telhado de um silo, a 130 metros do palanque.

Esta é uma das razões pelas quais o arrefecimento da pressão sobre Biden possa ter vindo para durar. É o Biden presidente que tem condições de garantir uma investigação independente sobre o atentado. Não parece ter sido outra a razão pela qual seu terceiro pronunciamento sobre o fato ter sido feito a partir do Salão Oval da Casa Branca senão a de mostrar-se presidencial.

Ante as acusações de leniência feitas por partidários de Trump, a insistência de democratas pela troca de candidato corre o risco de produzir uma descabida confissão de culpa do presidente. Até que a investigação se conclua e Biden possa presidir a produção de seus resultados, a convenção Democrata que ratificará a candidatura do partido já terá passado.

Ao contrário da primeira chegada de Trump à Casa Branca, em 2016, a chance crescente de vitória em novembro não representa a vanguarda da extrema-direita, mas o isolamento dos Estados Unidos. Foi a resistência a este avanço que determinou o resultado eleitoral na França e no Reino Unido, mitigou a força do novo mandato do primeiro-ministro Narendra Modi na India e colocou Claudia Sheinbaum na Presidência do México.

Desde os primeiros minutos que se seguiram ao atentado, a família Bolsonaro trata o evento, num país de longuíssima tradição de violência política, como exportação da facada de setembro de 2018 em Juiz de Fora. É um produto “made in US” com o qual o bolsonarismo quis inundar o país, a começar pela liberação das armas.

A julgar pelo ato esvaziado do domingo, que não chegou a ocupar nem mesmo um quarteirão da avenida Paulista e uniu o protesto contra o indiciamento de Jair Bolsonaro no inquérito das joias sauditas e cartazes “Trump vive”, o Brasil ainda se mantém na resistência. Só falta repor a majoração de imposto das armas.


 

2 comentários:

Anônimo disse...

Coluna brilhante, muito bem pensada e argumentada!

Anônimo disse...

A imprensa escondeu junto com o partido democrata mais de quatro anos a decrepitude e as senilidade do presidente Biden , o debate revelou o que estava sendo escondido , um presidente gaga
O Presidente Trump sobreviveu ao atentado e agora marcha impávido rumo casa branca