quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Roberto DaMatta - Olimpíada

O Globo

Convocar todos os países abre a oportunidade de perceber o mundo como feito de unidades diferenciadas em poder e riqueza

Acompanhei como pesquisador interessado em rituais e dramatizações coletivas, e como correspondente da Rede Manchete de Televisão, a Olimpíada de 1984 em Los Angeles.

A experiência grandiosa de reunir quase todas as modalidades esportivas praticadas em todo o mundo num só espaço permite observar os estilos diferentes de prática e reação à vitória e à derrota de atletas de culturas e sociedades distintas. O antropólogo social francês Marcel Mauss chamou, em 1936, a atenção para o estudo dos usos do corpo em diferentes culturas. Reuniões olímpicas são ocasiões primorosas para o estudos das “técnicas de corpo” de épocas e origens diferentes.

As Olimpíadas lembram o carnaval na orgiástica universalidade e na ênfase na “carne”. Com a diferença óbvia de que, no carnaval, somos olímpicos no quimérico e na sensualidade, ao passo que os jogos esportivos são ordenados por padrões objetivos e normas claras de disputa. Mas ambas as festividades se equiparam no ideal de recriar o mundo como centro festivo — como campo fora das rotinas que atam os meios e os fins da vida prática, racional e progressista. Progressismo que registra recordes e, em certas modalidades, põe à prova os limites do corpo humano.

Em 1984 em Los Angeles, integrei um grupo de antropólogos que observou, reafirmo, os Jogos como rituais. Como situações fora da rotina que marcam a plausibilidade do mundo diário, quando os fins e os meios devem estar relacionados. No cotidiano paulificante, mas tranquilo, as piscinas não são usadas como instrumentos de capacidade e disputa natatória. São desfrutadas como equipamento de um lazer despreocupado, precisamente porque nos isolam temporariamente do trabalho que exige vínculos precisos entre prego, tábua e martelo.

Escrevi sobre a Olimpíada como conjunto de ritos que exaltavam o competir e o confronto como divertimento ou esporte, jamais como guerra. Na vida diária, o esporte é jogo, diversão, negócio, profissão, paixão e — acima de tudo — transparência e conformidade na derrota.

Na Olimpíada, modalidades esportivas são destituídas de suas compulsões viscerais do perder ou do ganhar. Nelas, o foco é o competir, e o competir do modo mais claro, sincero e objetivo possível. É justo, nesse sentido idealizado, que os Jogos Olímpicos englobem suas facetas práticas e politizadas.

Vale enfatizar que o ideal de convocar todos os países abre a oportunidade de perceber o mundo como feito de unidades diferenciadas em poder e riqueza. E, ao mesmo tempo, oferece a experiência excepcional de presenciar a competição de representantes de países poderosos com atletas de povos outrora colonizados e em desenvolvimento em “jogos” nos quais seus atletas disputam em igualdade de oportunidades.

Esse confronto entre Golias e Davis talvez seja uma fonte significativa da popularidade da Olimpíada. Uma outra é que ela expõe exímios praticantes dos esportes individuais, como natação, atletismo e ginástica, em luta muito mais contra si mesmos que contra adversários concretos — como ocorre nos esportes com rede, bola e campo em que se enfrenta um adversário. Isso, é claro, na ginástica, no atletismo e na natação. São modalidades em que os atletas olímpicos têm como adversários seus inconscientes, o tempo de suas provas e sua habilidade de usar os corpos como avatares de perfeição estética.

Um ponto fundamental dos Jogos Olímpicos é que exaltam e dramatizam o ideal democrático de igualdade absoluta e totalmente controlada. Uma igualdade que é a base de todo o ritual esportivo nascido — conforme sabemos, numa Grécia idealizada e no continente europeu — e difundido pelo mundo como valorização do ser humano como pessoa dotada de algum tipo de excepcionalidade. Realmente, a preocupação com a obediência a normas e regras de cada modalidade esportiva — bem como a excelência dos atletas que ali estão não por compadrio ou preferência política — remove do ato competitivo a violência do incivilizado, mas habitual e realista, “vencer a todo custo”.

Certamente, talvez a maior dramatização da Olimpíada seja essa forte e consistente experiência democrática do respeito às regras. Pois, nas democracias são as leis, mais que medalhas e fama, que glorificam cidadãos e atletas.

 

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