Convém que o Brasil se comporte nas manifestações públicas sobre comércio com sobriedade diplomática
HÁ CERTO alarmismo em comparar com a onda protecionista dos anos 20 e 30 episódios recentes ainda relativamente pouco numerosos e expressivos. O artigo "Buy American" do estímulo de Obama é brincadeira em cotejo com a Lei Smoot-Hawley, que desencadeou em dois anos retaliações de 25 países e guerra comercial generalizada. A lei de 1930 foi estimulada e assinada pelo presidente Hoover, do partido protecionista da época, o Republicano, responsável pelo estouro das duas megacrises de 1929 e 2008.
Até agora, a maioria dos casos é expressão da tendência de todos os países a defenderem seus próprios empregos em períodos agudos de crise. Um pouco o que o coronel Tamarindo exclamou em Canudos ao alastrar-se a debandada que ia custar-lhe a vida: "É tempo de murici/ cada qual cuide de si". Não existindo nenhuma efetiva coordenação internacional para combater a crise, os países se resignam a tomar medidas essencialmente nacionais, até na Europa, onde impera moeda única. Após a fase de excessiva exaltação da globalização na era Clinton-Blair, assiste-se à volta do pêndulo ao equilíbrio mediante uma espécie de "desglobalização" moderada.
Acautelar-se para evitar a propagação do protecionismo é atitude louvável, sobretudo da parte da OMC (Organização Mundial do Comércio), que existe para isso. Denúncias e ações de governos podem ser úteis, mas a credibilidade na matéria exige coerência, aplicação não-seletiva e equilíbrio. É bom que o Brasil adote atitude de vigilância, pronto a defender interesses concretos que sejam de fato afetados, o que não aconteceu ainda em relação à emenda americana. Aliás, a prática do governo brasileiro de favorecer fornecedores locais é notória, justificando nossa rejeição do acordo da Rodada Tóquio sobre compras governamentais e tornando duvidosa nossa coerência no assunto.
A coerência tampouco é o nosso forte em relação à Argentina, cujo arsenal de licenças, preços de referência e antidumping reduziu-nos em 50% as exportações ao vizinho em janeiro. Em razão da sensibilidade das relações políticas e de integração, é possível que o Brasil não tenha alternativa a não ser contemporizar, aceitando enormidades como o Mecanismo de Adaptação Competitiva.
Deve-se deixar claro, contudo, que isso é o contrário do sistema multilateral de comércio, que temos defendido com veemência no caso dos EUA. Buscar equilíbrio na base de acordos bilaterais, às vezes até com moeda especial, lembra os acordos de compensação dos anos 30, do tipo dos que mantivemos com a Alemanha nazista do dr. Shacht. Parte significativa do comércio Brasil-Argentina no setor automobilístico e alguns outros se parece mais ao sistema de comércio administrado baseado em cotas do que ao multilateralismo.
A competitividade do carro brasileiro é frágil, com 40% das exportações dependendo do mercado argentino. Isso nos obriga a manter elevada a proteção tarifária e acordos administrados com a Argentina e latino-americanos.
Não poderão jogar-nos a primeira pedra os países, quase todos hoje, que subsidiam a indústria automotriz. Convém, no entanto, que, consciente das próprias mazelas, o Brasil se comporte nas manifestações públicas sobre comércio com a sobriedade diplomática que fica bem a um país cujo único poder é o do prestígio e do exemplo.
Rubens Ricupero , 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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