domingo, 15 de janeiro de 2012

A indústria que se alimenta das chuvas no Rio

Presidente do Clube de Engenharia diz que obras de emergência custam em média dez vezes mais do que as preventivas

O Morro da Carioca, em Angra dos Reis, onde deslizamentos de terra mataram 21 pessoas em janeiro de 2010: obras de contenção avançam lentamente, expondo moradores a risco

Fábio Vasconcellos, Duílo Victor e Rafael Galdo

Os repetidos desastres ambientais causados pelas chuvas no Rio são o combustível de uma engrenagem com raízes históricas no Brasil. Incapacidade administrativa, burocracia, interesse político e as chamadas "obras emergenciais", que dispensam licitação e são uma oportunidade para o desvio de recursos. Bem azeitados, esses componentes funcionam como a indústria da seca, que por muito tempo atuou no semiárido nordestino. A lógica é a mesma. Por mais que o poder público tenha conhecimento de onde e quando haverá problemas, a lentidão ou desinteresse em se antecipar aos danos põe para girar a indústria da enchente, na qual alguns ganham com obras pontuais ou apenas de emergência, e todos perdem com a falta de projetos que de fato poderiam reduzir o impacto de futuras tragédias.

No caso mais vivo na memória - a enxurrada que devastou a Região Serrana em janeiro de 2011 - ficou comprovado como o setor público se move a passos lentos. Um ano após a tragédia que matou 918 pessoas, não foi erguida uma só parede das 5.459 casas populares financiadas pelo governo federal para abrigar os moradores de áreas de risco. O poder público alega que houve atraso no repasse de recursos e falta de interesses das construtoras no negócio. A promessa do governador Sérgio Cabral é iniciar as obras ainda este ano. Nesses 368 dias depois da tragédia, o trabalho de contenção de encostas ainda não foi concluído e só uma das 75 pontes destruídas foi recuperada. O motivo teria sido a demora na liberação da licença ambiental devido a projetos de execução inadequados.

Cheias do Paraíba do Sul: problema que se repete

Na semana passada, o Rio Paraíba do Sul, em Campos, transbordou, inundando ruas da cidade. Nenhuma novidade. O problema é um velho conhecido do governo do estado e da prefeitura. Em dezembro de 2008, representantes dos dois níveis de governo sobrevoaram o município e prometeram estudar medidas para reduzir o impacto da enchente do rio. Três anos depois, apenas parte do projeto de recuperação dos canais e diques ligados aos Rio Paraíba do Sul foi realizado. O governo do estado diz que faltou dinheiro para fazer toda a obra, que é financiada também pelo governo federal. O estado voltou a prometer obras para evitar o extravasamento dos Rio Muriaé e Paraíba do Sul.

Sem projetos que ajudem a mudar ou reduzir os danos das chuvas, restam as obras emergenciais, que são anunciadas com pompa por autoridades horas depois dos desastres. Pelos cálculos do presidente do Clube de Engenharia do Rio, Francis Bogossian, as intervenções emergenciais custam, em média, dez vezes mais do que aquelas consideradas preventivas. Bogossian explica que além de uma cultura de prevenção, faltam aos municípios, que são os responsáveis pela a ocupação do solo, recursos materiais e humanos para realizar as obras:

- Os municípios não fazem o trabalho preventivo, simplesmente porque não têm condições de fazer. Caberia ao governo federal mobilizar recursos e especialistas para fazer esse trabalho que custa muito menos do que as ações emergenciais, além de ajudar a evitar mortes.

Para o cientista político e sociólogo da Universidade Federal do Rio (UFRJ) Paulo Baía, a indústria da enchentes existe porque os governos não têm interesse em acabar com as situações emergenciais, quando ocorrem contratações por valores superfaturados e sem concorrência. O professor cita como exemplo o caso da Região Serrana, onde o Ministério Público Federal investiga o desvio de recursos destinados a obras de reconstrução.

- Não existe no plano nacional uma estratégia de defesa civil e ambiental. E ninguém pode dizer que falta tecnologia e conhecimento para isso. Temos e muito. Todo mundo sabe, desde o século 17, qual é o período de chuva no Rio. O poder público sabe também onde estão as áreas de risco. Mas o poder público se acostumou com a excepcionalidade e não atua preventivamente. Quando acontece a tragédia, ele decreta estado de calamidade e assim pode contratar serviços dos seus financiadores de campanha. É a industria da enchente ou se preferir, a indústria do verão - defende Baía.

Exemplos não faltam de como essa indústria opera a todo vapor. O ano de 2010 mal tinha começado quando a população fluminense acordou sob o impacto das imagens da destruição de Angra dos Reis, na qual 53 pessoas morreram. Era de conhecimento de todos como Angra cresceu sem controle, com inúmeras casas em áreas de risco.

Dois anos após uma tempestade, o cenário de destruição no Morro da Carioca - onde os deslizamentos mataram 21 pessoas, 11 delas crianças e adolescentes - mantém presente a memória da tragédia. Ali, tanto tempo depois, as obras de contenção da encosta que desabou pouco avançaram. E quem voltou para a comunidade ainda vive ao lado de uma montanha de escombros e barro. Uma paisagem desoladora que se repete em vários pontos da cidade arrasados pelo temporal.

FONTE: O GLOBO

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