Num
movimento comparável ao de uma constituinte, o Congresso está reformando ao
mesmo tempo, seis códigos fundamentais para os brasileiros, como o Eleitoral, o
do Consumidor e o de Processo Penal, além das regras de partilha de tributos,
informa José Casado. O pacote inclui desde punição de crimes na internet até
flexibilização de regras sobre drogas, além da redução de penas para gestão
fraudulenta, um dos delitos do mensalão.
Sob pressão reformista
Congresso prepara
mudanças em seis códigos de leis fundamentais para a vida do brasileiro;
alterações incluem áreas como voto, drogas, crimes e negócios, além de partilha
de tributos entre governos
José Casado
LEIS EM TRANSFORMAÇÃO
O Congresso decidiu
mudar o ordenamento jurídico do país: avança, simultaneamente, na reforma de
seis códigos de leis fundamentais para pessoas e empresas e, também, nas regras
sobre a partilha de tributos entre governos.
Essas mudanças vão
afetar pelas próximas décadas os seguintes direitos individuais, coletivos e
empresariais: de liberdade (Códigos Penal e de Processo Penal); de voto (Código
Eleitoral); de relações de consumo (Código do Consumidor); de negócios (Código
Comercial); de acesso à Justiça (Código de Processo Civil); e, de partilha de
tributos entre governos (o "Pacto Federativo").
Na história recente
não há registro de reformas legislativas com tal dimensão e profundidade,
executadas ao mesmo tempo e em ritmo acelerado - exceto nos períodos das
assembleias nacionais eleitas para mudar a Constituição.
Promove-se ampla
substituição dos principais conjuntos de leis comuns, aquelas que regulamentam
o cotidiano das pessoas e empresas. E pretende-se mudar as regras
constitucionais das relações de poder entre a União, estados e municípios na
divisão de tributos.
Desde abril, o Senado
e a Câmara aceleraram a análise simultânea de diferentes projetos para os novos
códigos. Nas propostas há de tudo.
Inovações, como o fim
da liberdade provisória para acusados de homicídios (a Lei Fleury). Polêmicas,
como a flexibilização das regras sobre uso de drogas, aborto e eutanásia, e a
redução de penas do crime de gestão fraudulenta - uma das bases do processo do
mensalão.
E, também,
retrocessos, como a tentativa de reinstauração da censura em nome da proteção
dos "direitos da personalidade".
O artífice desse
inédito processo reformista é José Sarney, presidente do Senado e ex-presidente
da República.
Aos 82 anos, Sarney
celebra o seu cinquentenário de vida parlamentar como autor de seis das sete
iniciativas em curso para reformas em códigos de leis. A exceção é o Código
Comercial, patrocinado pelo PT.
É uma ousadia
política que ele viabilizou na aliança com o ex-presidente Lula e a presidente
Dilma Rousseff. Pelo seu cronograma, as mudanças devem estar aprovadas até
2014.
Há consenso sobre a
necessidade de atualização dos códigos. Mas são crescentes as críticas no
Congresso sobre a forma e o método adotados, que aparentemente terminam por
influenciar o conteúdo.
Comissões de juristas
foram criadas para debater e escrever os anteprojetos, que agora estão em
análise simultânea no Senado e na Câmara. É um roteiro legislativo inverso ao
habitual e que foi seguido na Constituinte de 1987, no qual os projetos nascem
dentro do Congresso. Sarney era presidente da República na época da elaboração
da atual Constituição. Chegou a criar uma "comissão de notáveis" que
preparou um projeto. O documento foi recebido e morreu numa gaveta do
Legislativo.
- Precisamos adaptar
a legislação ao novo pacto social - argumenta Sarney. -Essa é uma tendência
mundial. Aqui a votação de um código não levava menos de 20 anos, por isso nós
resolvemos criar comissões de especialistas para oferecer subsídios ao
Congresso.
Acrescenta:
- A experiência
mostra que isso evita a interferência no trabalho normal das comissões. E tem a
vantagem de que já se começa a trabalhar com os projetos em tramitação. Ou
seja, não tem a iniciativa de elaboração no Congresso, ele examina o projeto.
Tem dado certo, ele
acha.
- Cada uma das
comissões de especialistas fez mais de 30 audiências públicas pelo país e, além
disso, recebemos milhares de sugestões - diz o presidente do Senado. - O que
fizemos foi deixar a parte fundamental, a dos anteprojetos, pronta para o
Congresso decidir, iluminado e com todas as luzes sobre ele.
Há quem veja riscos
nessa mudança do processo legislativo para reformas simultâneas em um conjunto
tão amplo de leis fundamentais.
Um deles é Celio
Borja, ex-ministro do Supremo, ex-presidente da Câmara e relator da última
revisão do Código Penal, em 1973.
- É muito arriscado
se fazer tudo isso ao mesmo tempo, sem consulta ampla ou com pouco debate -
pondera. -É preciso mais cuidado. A maioria das ideias que estão por aí não me
convence, algumas são quase juvenis. Mas, no sentido geral, estão empurrando
uma nova produção legislativa, infraconstitucional, que vai acabar por regular
excessivamente a liberdade privada.
Há aspectos positivos
e, entre eles, ressalta Borja, o mais relevante é que o País "está se
repensando de maneira global". Mas identifica ameaças:
- Tenta-se submetê-lo
a uma ordem única, a da obediência ao que seria politicamente correto, e, com
isso, o espírito da própria vontade vai diminuir. O risco de dessintonia é
grande, por exemplo, se não puderem ser combinados os códigos Penal e de
Processo Penal.
No Congresso há três
décadas e meia, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) diz temer pelos resultados
desse ímpeto reformista pela pouca transparência e restrição do debate ao mundo
dos escritórios jurídicos:
- As comissões de
especialistas de fora, com alguns juristas convidados, é que fazem o trabalho
todo. Nelas não tem um único parlamentar. Os projetos chegam aqui prontos e
seguem seu caminho.
Na semana passada, o
Senado recebeu um novo conjunto de anteprojetos - emendas constitucionais que
redesenham a partilha de tributos entre governos.
- Isso é perigoso -
ele acha. - As leis precisam ser mudadas, o Código Civil tem um século, mas
essa forma e esse jeito de fazer são complicados, porque vão afetar interesses
de gerações inteiras. E, principalmente, porque temos um parlamento em crise,
sem fartura de valores, tanto que estamos aí com uma CPI sob suspeita.
Há críticas, também,
na Câmara.
- O que estamos vendo
não é normal e é muito preocupante - diz o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que
foi constituinte em 1987. - Temos a imposição do pensamento de uma maioria
parlamentar, que é passageira, sobre códigos de leis que vão durar no mínimo 40
anos. Aliás, o mecanismo usado é o mesmo do governo Ernesto Geisel (1974-1979),
que tinha mania de criar comissões e mandar anteprojetos para o Congresso
votar.
Mais polêmico do que
o método legislativo adotado para essas reformas simultâneas, só mesmo o
conteúdo de algumas das propostas em análise no Senado e na Câmara. Exemplos:
1) Restauração da
censura: o texto em debate para o novo Código de Processo Civil previa, até o
início da semana passada, a instituição de censura através de
"procedimento especial" (ação inibitória e ação de remoção de
ilícito) "para a tutela adequada dos chamados novos direitos - os direitos
da personalidade e outros direitos sem conteúdo patrimonial", na descrição
do relator-geral, deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA).
2) Restrição do
acesso à Justiça. No mesmo projeto restringe-se a apresentação de recursos, ou
apelações, aos fóruns de regiões metropolitanas. Por esse critério, as pessoas
residentes em áreas remotas na Amazônia -metade do território nacional -
precisariam viajar, em alguns casos de barco e durante dias, para conseguir
levar seus requerimentos aos juízes.
3) Redução de penas
do crime de gestão fraudulenta. Há propostas para o Código Penal que objetivam
diminuir a penalização dos delitos empresariais, na contramão do que o Supremo
Tribunal Federal está fazendo no julgamento do mensalão. O Código atual prevê
pena de três a 12 anos de prisão para esse tipo de crime, mas sugere-se que no
novo Código a pena seja limitada entre um e cinco anos de cadeia. Em tese,
alguém condenado no processo do mensalão, poderia cumprir pena menor se a
proposta for aprovada para o código do futuro.
4) Mudança da Justiça
Eleitoral: significa a criação de novo braço do Judiciário federal, com juízes,
sedes, funcionários e orçamento próprio em cada distrito eleitoral do país.
Fonte: O Globo
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