- O Estado de S.Paulo
Na ausência de votos e de dinheiro suficientes, restaram as armas como recurso político
Com as maiores reservas mundiais de petróleo, a Venezuela não consegue alimentar o seu povo. Pesquisa feita por universidades venezuelanas (Encuesta Nacional de Condiciones de Vida) mostra que, em 2016, quase 80% dos venezuelanos apresentaram perda significativa de peso em relação ao ano anterior. O dado mostra um dos aspectos dramáticos de uma crise humanitária que cresce a cada dia no país vizinho, onde falta de tudo, do alimento à liberdade.
Culpa do imperialismo? Ora, as exportações de petróleo venezuelano para os EUA mantiveram-se inalteradas desde que Chávez chegou ao poder, em 1999. Representam hoje, como então, aproximadamente 10% das importações americanas de petróleo. Fluem para o mercado americano em torno de 35% das exportações venezuelanas de petróleo. Se Washington quisesse, provocaria enorme dano à Venezuela, sem impacto maior sobre o seu abastecimento interno de combustíveis.
A culpada pela tragédia seria, então, a redução à metade no preço internacional do petróleo nos últimos três anos? Óbvio que a queda dos preços dessa commodity não ajudou a Venezuela. Mas não foi apenas o preço que caiu. Despencou também a produção venezuelana de petróleo, que era de cerca de 3 milhões de barris/dia no início do ciclo chavista e hoje se encontra ao redor de 2,5 milhões de barris/dia e em queda. Além disso, em lugar de aproveitar o boom do petróleo para diversificar a economia, Chávez e Maduro só fizeram aumentar a dependência da Venezuela em relação ao “ouro negro”: as exportações de petróleo, que respondiam por menos de 70% das exportações totais no final dos anos 90, hoje representam quase 100%.
A verdade é que a crise humanitária em curso na Venezuela é produto da lavra do chavo-madurismo. Apesar da mística revolucionária, não é difícil explicar a lógica das ações que conduziram a Venezuela à situação atual. A transformação da PDVSA em instrumento do poder chavista dentro e fora do país foi matando a galinha dos ovos de ouro e desorganizando o Estado e a economia do país.
A partir de 2005, quando Chávez anuncia a construção do “socialismo do século 21”, recursos crescentes da empresa estatal petroleira passaram a ser carreados para um fundo gerido discricionária e diretamente pelo presidente da República. Dois anos antes, ele assumira controle absoluto sobre a PDVSA, depois de demitir nada menos de 18 mil funcionários, uma perda de recursos humanos qualificados sem precedentes na história da indústria petroleira mundial.
Hoje, quando faltam comida ao povo e votos ao governo, sobra ao regime, para se manter no poder, o uso da força bruta. Para tanto, conta com a fidelidade da cúpula das Forças Armadas, a maior beneficiada pelo destrutivo “socialismo do século 21”, pródigo em gerar oportunidades de corrupção e ganhos ilegais, e com a mobilização de milícias populares, formadas por um regime que deu armas aos seus, mas não é capaz de assegurar o básico à população do país.
Enquanto os preços internacionais do petróleo estiveram em alta constante (de aproximadamente US$ 45 o barril para mais de US$ 100 entre 2005 e 2012), abundava dinheiro para o financiamento de programas sociais orientados a criar relações de lealdade entre o “povo chavista” e seu carismático líder político. E ainda sobravam recursos para projetar a influência da “revolução bolivariana” sobre países latino-americanos e caribenhos por meio do fornecimento subsidiado de petróleo e doações eleitorais subterrâneas.
No seu auge, o chavismo se mostrava eleitoralmente imbatível em casa e cada vez mais desenvolto no exterior. Seus feitos encantavam grande parte da esquerda latino-americana e mesmo parte da esquerda europeia. E seus recursos forravam cofres e bolsos de políticos, empresários, partidos, consultores, etc., como a Lava Jato tem revelado.
Aqui, no Brasil, os governos do PT e outros partidos ditos de esquerda cantavam o chavismo em verso e prosa, ressaltando a legitimidade que lhe dava o voto popular e a redução da pobreza. Sim, havia distribuição da renda, mas já era claro que o insustentável distributivismo chavista se alimentava da destruição do estoque de riquezas do país (junto com o populismo petroleiro, campeava a desarticulação da agricultura e dos serviços, com expropriações e controle de preços). Igualmente clara era a substituição das antigas oligarquias por uma nova elite civil, militar e, sobretudo, mafiosa, nutrida por uma rede de negócios propiciados pela arbitrária gestão do Estado e da economia. Não menos evidentes eram as crescentes tendências autoritárias do governo chavista (fechamento de rádios e TVs opositoras, aprovação de reeleição ilimitada para o presidente, etc.).
Com a morte do seu líder máximo no início de 2013 e a queda do preço do petróleo, o sonho chavista virou pesadelo. Depois de perder a maioria na Assembleia Nacional ao final de 2015, o regime rasgou o fino véu democrático que ainda lhe encobria a face essencialmente autoritária. Na ausência de votos e recursos financeiros suficientes, restaram as armas como recurso político. E o governo venezuelano o tem empregado sem restrições, não apenas diretamente pelas mãos do Exército e das milícias (na morte e tortura de manifestantes, na prisão de líderes opositores, etc.), mas também indiretamente, como garante último da escalada de arbitrariedades que, pisoteando a própria Constituição chavista de 1999, resultou na implantação de uma ditadura, mal disfarçada por uma Assembleia Constituinte ilegítima.
As engrenagens que passaram a se mover em 2005 hoje trituram a Venezuela. Ao seu início, o “socialismo do século 21” recebeu aplausos e apoio dos governos do PT e seus aliados. Agora, recebe conivente, embora envergonhada, solidariedade de uma esquerda não democrática. O que então já não era justificável hoje se tornou abjeto, à luz da tragédia em curso no país vizinho.
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*Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
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