quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Conrado Hübner Mendes* - O que a Constituição queria do STF era coragem

Folha de S. Paulo

Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco temporal' para julgar

A democracia brasileira precisa de um marco temporal. Não a tese jurídica que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates constituintes.

Falta à democracia brasileira um marco temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo, não nego, julgo quando quiser".

Nesta quarta-feira (1º) a corte começou a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).

caso chegou ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado para 2020, foi adiado sem maiores explicações.

Agora, corre risco de novo adiamento em função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.

A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.

Precisa saber que sua demora tem custos altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para desmatamentos e invasões.

Adiar e "deixar para o Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional, cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer contrapeso e proteger a ordem constitucional.

Em outros tempos, quando não havia presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.

O STF também precisa saber que a decisão errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte, quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.

E a generalização da tese do marco temporal é errada por muitas razões.

Ignora a literalidade do artigo 231 da Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas"). Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a "tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial". Arbitrária, portanto.

Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa: primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes, devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.

Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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