O Estado de S. Paulo
Não acreditei quando li na imprensa, há
algum tempo, que setores não apenas postulavam a redução de sua carga
tributária, mas pretendiam aumentar a carga de outros. Presumi,
equivocadamente, que o repórter não entendera o que foi dito.
Antes, existiam movimentos, nem sempre legítimos, visando à redução de carga tributária de empresas ou setores. Agora, esses movimentos, muitas vezes, buscam aumentar a dos outros. A matéria tributária se transformou, pois, num circo de horrores e os projetos de “reforma”, em exercícios de predação, inclusive entre os entes federativos.
Para dar curso à predação se faz uso da
linguagem como instrumento de manipulação, a exemplo de: eliminação de
“distorções”, que desconsideram o imperativo constitucional de redução das
desigualdades regionais de renda e passam ao largo da sonegação e do
planejamento tributário abusivo, que são distorções verdadeiras no sistema
tributário; “alinhamento internacional”, que supõe práticas que não são
universais, média de alíquotas nominais que nada significam etc, quando o que
de fato atrai investimento são diferenciais na competição tributária (em
disputas esportivas com os EUA, recomenda-se que o Brasil opte pelo futebol, em
lugar do basquetebol); remissão à “literatura internacional”, tomada como
dogma, quando em realidade é uma coleção de ensaios sobre situações
específicas, que jamais deverá ser transposta acriticamente, sem tomar em conta
as circunstâncias políticas e históricas de um país; dramatização insubsistente
de fatos, a exemplo da história dos sapatos crocs, cuja oscilante classificação
é apontada como evidência da má qualidade do sistema tributário brasileiro e, a
rigor, é um caso associado à aplicação de direitos antidumping, pela Câmara de
Comércio Exterior (Camex), a sapatos importados da China, sabendose que
calçados, qualquer que seja sua classificação, têm a mesma tributação;
impróprias comparações entre a tributação das pessoas jurídicas (risco
empresarial, pagamento de outros tributos, além do Imposto de Renda) e das
pessoas físicas (FGTS, férias e sua conversão parcial em dinheiro,
aposentadoria integral ou não, 13.º salário, seguro-desemprego), em lugar de
coibir situações que configurem dissimulação na prestação de serviços;
linguagem ambígua, como confundir competição fiscal lícita com guerra fiscal ou
afirmar que a carga tributária não vai aumentar, quando o que importa é a
repercussão específica sobre contribuintes ou preços, e não um indicador de
caráter agregado; saltos lógicos, consistindo em apontar problemas no
burocratismo tributário, cuja solução se inscreve no âmbito da administração
tributária, para pretextar mudanças na natureza dos tributos.
Contrasta com este quadro a inapetência
para dar curso a leis complementares, previstas na Constituição de 1988 e até
hoje não editadas, como, entre outras, a resolução dos conflitos de competência
tributária entre os entes federativos, o disciplinamento da incidência do
Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), nos casos de
domiciliados no exterior, e a concessão e revogação de isenções, incentivos e
benefícios fiscais do ICMS.
É certo que a reparação dessa mora
legislativa exige trabalho e não confere ao autor tanto prestígio quanto
proclamar que tudo está errado no sistema tributário brasileiro e propor uma
reforma “ampla”.
Paralelamente, é constrangedora a surpresa
das autoridades com o volume de precatórios a serem incluídos no Orçamento de
2022, pois, afinal, são sentenças judiciais passadas, que deveriam ser objeto
de um atento acompanhamento. Mais constrangedoras, entretanto, são as
pretensões de promover seu parcelamento, ainda que mediante Proposta de Emenda
Constitucional, na contramão de decisões já tomadas no STF e eternizando o
problema, em desfavor da credibilidade fiscal.
Pode-se mitigar a repercussão do pagamento
de precatórios. Para isso, contudo, se exige uma boa dose de criatividade e de capacidade
de negociação.
*Everardo Maciel Consultor Tributário, foi
secretário da Receita Federal (1995-2002
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