Mexer no Artigo 142 não afasta risco de golpismo
O Globo
Subordinação de militares ao poder civil é
cristalina na Constituição. Mudança seria mera redundância
O ministro do Supremo Tribunal Federal
Gilmar Mendes defendeu em entrevista à GloboNews que o Congresso reformule o
Artigo 142 da Constituição, que trata do papel das Forças Armadas. Levando em
conta o passado recente, a justificativa soa razoável: tornar mais explícito o
conteúdo da Carta para evitar que, no futuro, movimentos golpistas tentem se
escorar em interpretações exóticas do texto constitucional para defender a
quebra da ordem democrática. Na Câmara, petistas angariam apoio para uma
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com esse fim, mas ainda sofrem
resistência.
Em que pese a circunstância, é duvidoso que qualquer mudança dessa natureza afaste o risco de desvarios. Para começar, não há nada de ambíguo no Artigo 142. Ele é explícito quanto à subordinação das Forças Armadas ao poder civil, ao dizer textualmente: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Há virtual unanimidade entre os juristas ao rechaçar a interpretação criativa que vê nesse texto uma brecha para intervenção militar. Por que mudá-lo então?
Constituintes ouvidos pelo GLOBO declararam
que o trecho final, que versa sobre a prerrogativa de um dos Poderes convocar
as Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem, foi escrito e aprovado com o
entendimento de que tal medida poderia ser necessária em casos excepcionais,
como a garantia de eleições pacíficas em regiões com problemas de segurança
pública. Mesmo antes da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, circulava nos
meios militares a interpretação segundo a qual esse trecho permitiria às Forças
Armadas atuar como uma espécie de Poder Moderador. É uma leitura que não faz o
menor sentido, qualificada com precisão pelo ministro do STF Luís Roberto
Barroso de “terraplanismo jurídico”.
Na entrevista à GloboNews, Gilmar contou
que o general Eduardo Villas Bôas, quando comandante do Exército, lhe perguntou
se era correto afirmar que as Forças Armadas eram o verdadeiro árbitro em
termos constitucionais, podendo mediar conflitos entre Supremo e Congresso.
Mesmo inúmeras vezes desmentida, a tese ganhou tração nas redes sociais,
alimentou o movimento golpista e continua a ser repetida por bolsonaristas mais
radicais. Os acampados nas proximidades de quartéis depois das eleições de
outubro clamavam por intervenção militar dizendo-se amparados na Constituição —
pura sandice.
As principais lideranças das Forças Armadas
têm dado forte demonstração de respeito à lei. Durante o 8 de Janeiro pode ter
havido omissão de um ou outro militar, mas não foi registrado movimento atípico
em nenhuma instalação de Aeronáutica, Exército ou Marinha. Qualquer mudança na
Carta para esclarecer o papel institucional dos militares na democracia seria
apenas uma redundância para, nas palavras de Gilmar, “não dar ensejo a uma
reincidência”. Pode ser. Mas é difícil acreditar que mexer no Artigo 142 tenha
o condão de acabar com as sandices ditas sobre ele. Nunca faltaram nem faltarão
pretextos absurdos aos golpistas para justificar seus atos.
Pouca transparência em obras públicas é
convite à corrupção e ao desperdício
O Globo
Levantamento do TCU identificou 8.674 obras
inacabadas, mas não soube apontar razão para 2.596
Preocupado em mostrar serviço o mais rápido
possível, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu reabrir o canteiro de
8.674 obras públicas inacabadas. A paralisia se espalha pelo país pelo menos
desde seu último governo, passando pelos de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair
Bolsonaro.
Há de tudo no pacote, inclusive 22 obras de
contenção de encostas, algumas em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, palco
da tragédia que matou 241 pessoas no ano passado em razão das chuvas. Embora o
convênio para o acesso aos recursos federais pela prefeitura da cidade tenha
sido assinado em 2012 no governo Dilma Rousseff, 11 anos depois elas estão
paralisadas. Não se pode pôr a culpa no destino se novas enxurradas levarem
tudo novamente morro abaixo.
O exemplo petropolitano é um caso típico.
Entre os responsáveis pela descontinuidade das obras estão os meandros da
burocracia e o jogo político que abre ou fecha os cofres públicos a depender do
partido do governador e do prefeito. Ambos precisam ter acesso a
gabinetes-chave em Brasília para conseguir recursos para seus projetos. A
principal causa da paralisia, porém, é a má gestão dos projetos por quem recebe
os empréstimos, os próprios estados e municípios.
Não deixa de ser irônico que, ao analisar
as 8.674 obras inacabadas, o Tribunal de Contas da União (TCU) tenha encontrado
1.356, 15,6% do total, iniciadas nas gestões petistas, a maioria ligada a
esporte, lazer ou cultura, como praças, parques, centros esportivos ou de
convenções.
Basta ver o que acontece com uma obra
simples para entender as dificuldades enfrentadas pelo poder público para
entregar qualquer melhoria em infraestrutura. A construção de uma adutora de
água tratada em Mossoró, Rio Grande do Norte, terá levado pelo menos 14 anos
para ser concluída. O convênio foi assinado em janeiro de 2010, envolvendo R$
74 milhões em recursos federais. O governo estadual justifica o atraso pela
necessidade de adequações no projeto e pela alta no preço de matérias-primas
durante a pandemia, desestimulando empreiteiras a disputar o empreendimento. A
obra será levada mais uma vez à licitação, com resultado previsto para 14 de
março — e entrega, se tudo correr como programado, só em 2024.
“É um problema crônico no Brasil a má governança dos investimentos públicos: falta de planejamento, projetos de baixa qualidade, problemas na programação dos investimentos, execução falha e fiscalização deficiente”, afirma o economista Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria. Há muito a melhorar no universo multibilionário das obras públicas, um ralo por onde escoa o dinheiro do contribuinte. A começar pela qualidade das informações: das 8.674 obras paralisadas, O GLOBO considerou na reportagem 6.078, porque o TCU nem sequer conhecia a causa da paralisação das 2.596 restantes. É num ambiente desses que floresce a corrupção.
Difícil equação
Folha de S. Paulo
Anúncio de novos gastos e renúncia de
receitas tornam norma fiscal mais urgente
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
pode continuar suas imprecações contra a meta de inflação e os juros fixados
pelo Banco Central para alcançá-la, mas só conseguirá avanço sustentável da
economia se enfrentar a raiz do problema: o descontrole orçamentário que leva
ao crescimento acelerado da dívida pública.
Até aqui, há apenas desconfiança com a
retórica e as ações gastadoras do governo.
Além dos R$ 200 bilhões em gastos
adicionados ao Orçamento na transição, vão se acumulando novos. O aumento do
limite de isenção do Imposto de Renda das pessoas físicas para dois salários
mínimos pode causar uma perda de arrecadação em torno de R$ 15 bilhões
anuais. Já o novo
valor do mínimo demandará R$ 5 bilhões, e aumentos para servidores
poderão chegar a R$ 10 bilhões por ano.
A única contrapartida é o pacote anunciado
em janeiro pelo ministro da Fazenda, que se ancora no crescimento de receitas
—em muitos casos, improvável.
Fernando Haddad promete que o déficit
primário federal não superará 1% do PIB neste ano, mas estimativas do setor
privado apontam para pelo menos 1,6%. Em qualquer caso, no entanto, a
iniciativa não passa de um remendo válido apenas para 2023.
A hora da verdade para o governo petista
será a apresentação de uma nova regra fiscal que substituirá o deteriorado teto
de gastos inscrito na Constituição.
Diante do agravamento do quadro econômico e
do ruído em torno da política monetária, torna-se ainda mais urgente uma
definição. É positivo,
então, que o ministro da Fazenda tenha se comprometido a antecipar o anúncio
para março.
Não se sabe como será tal arcabouço, mas é
necessário estabilizar a dívida ou até iniciar um processo de redução ainda no
atual mandato presidencial.
Para tanto, deve-se restaurar saldos
primários (antes das despesas de juros) positivos no valor de 1,5% do PIB. Do
ponto de partida atual, significa um ajuste de 3% do PIB —cerca de R$ 300
bilhões.
A literatura econômica aponta
possibilidades. Pode-se adotar como referência uma trajetória de dívida e fazer
ajustes no saldo ou implementar controles mais diretos das despesas. Diante dos
números, de todo modo, critérios permissivos não resolverão o problema.
Tão importante quanto a regra é instaurar
uma cultura institucional de boa conduta orçamentária, com mecanismos de
revisão de despesas e de programas obsoletos.
Embora os sinais até aqui não sejam
promissores, espera-se que o governo se baseie na racionalidade da
administração pública para tomar uma decisão que ditará os rumos da economia
adiante.
Política no varejo
Folha de S. Paulo
Custos da busca de Lula por votos
fisiológicos no Congresso começam a aparecer
A experiência do presidencialismo
brasileiro ensina que é futilidade esbravejar contra as barganhas a base de
cargos e verbas entre o Planalto e o Congresso. Da esquerda à direita,
políticos que chegaram ao poder tiveram de se valer do fisiologismo para montar
coalizões partidárias e poder governar.
Daí não se conclui que a prática deva ser
encarada com fatalismo. Há modos mais e menos virtuosos de conduzir as
negociações parlamentares, e circunstâncias mais e menos favoráveis para os
entendimentos. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), reconheça-se, tem de
operar em um contexto difícil.
Lula foi pragmático ao compor com o
centrão, que comanda o Congresso —e particularmente com o presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL), que até outro dia era um sustentáculo de Jair Bolsonaro
(PL). Os custos dessa aliança apenas começam a tomar forma.
Nesta semana, um acerto entre
os dois caciques permitiu que verbas dos ministérios sejam usadas para que
deputados novatos, que não participaram da elaboração do Orçamento
de 2023, possam destinar dinheiro a obras, eventos e projetos em seus redutos
eleitorais.
Assim será cumprida uma promessa de Lira em
sua campanha pela recondução ao posto, a um custo estimado informalmente em R$
3 bilhões. No cálculo mais otimista, a distribuição de verba renderá votos
oposicionistas a propostas como a reforma tributária e a nova regra de controle
fiscal.
De mais certo, o arranjo piorará um pouco
mais a qualidade do gasto público ao pulverizar recursos escassos em ações
paroquiais de prioridade mais que duvidosa —para nem falar do risco de desvios
e superfaturamentos.
Essa tem sido uma tendência com o
enfraquecimento do Executivo e o ganho de poder do Congresso sobre o Orçamento
nos últimos anos, infelizmente não acompanhado de maior responsabilização dos
parlamentares.
Eleito por margem mínima de votos, Lula
conta com sustentação frágil no Congresso —na Câmara, sua base reúne apenas 223
dos 513 deputados. Sua capacidade de negociação depende da generosidade da
caneta presidencial.
Nesse cenário, a melhor alternativa, como tem dito esta Folha, é estabelecer acordos em torno da agenda de governo. Com a divisão de fato do poder é possível obter apoios mais amplos e duradouros do que os oriundos das barganhas cotidianas no varejo de política.
Cuidado com o que se deseja
O Estado de S. Paulo.
Plano petista de apresentar PEC sobre Forças Armadas, como forma de combater interpretações golpistas do artigo 142, erra no diagnóstico do problema e dá margem a graves retrocessos
O PT planeja levar adiante, depois do
carnaval, uma articulação na Câmara dos Deputados para obter as 171 assinaturas
necessárias para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre
as Forças Armadas, informou o Estadão. O objetivo é reformular o art. 142 da
Constituição, para proibir a participação de militares da ativa em cargos
públicos e excluir as chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Em 2020, uma tentativa similar do partido
não prosperou. Agora, depois dos atos do 8 de Janeiro, os deputados petistas
Carlos Zarattini e Alencar Santana, autores da proposta, entendem que existem
condições para reapresentar o tema. “Achamos que esse é o melhor momento para
resolver o problema do artigo 142, porque houve uma tentativa de golpe, e a
extrema direita está mais fraca”, disse Zarattini.
Não há dúvida de que o texto constitucional
pode ser aprimorado; por exemplo, a proibição de militares da ativa em postos
do governo representaria um aperfeiçoamento institucional. No
Estado Democrático de Direito, o poder
político deve ser exercido exclusivamente por civis. No entanto, é preciso
advertir dois pontos importantes sobre o assunto.
Em primeiro lugar, o art. 142 da
Constituição não representa rigorosamente nenhum problema. Resultado de
negociação durante a Assembleia Constituinte, ele estabelece corretamente o
papel das Forças Armadas dentro do Estado Democrático de Direito. Depois de
defini-las como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente
da República”, a Constituição explicita a sua finalidade: “Destinam-se à defesa
da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem”.
A interpretação, aventada por setores da
extrema direita, de que o art. 142 atribuiria um papel de poder moderador às
Forças Armadas é pura invenção de quem discorda do funcionamento do Estado
Democrático de Direito e, em concreto, do princípio da separação de Poderes. O
texto da Constituição não autoriza essa leitura. As Forças Armadas estão
submetidas ao poder civil, e não o contrário.
Pior ainda é o discurso dos que, incapazes
de pôr limites a seus devaneios golpistas, pregam a possibilidade de uma
intervenção militar com base no art. 142 da Constituição. Trata-se de cabal
loucura, violência explícita contra toda a ordem constitucional.
Essas duas criações interpretativas, sem
nenhum respaldo no texto, não constituem, portanto, motivo para alterar a
Constituição. O problema não está na redação do art. 142, e sim na cabeça dos
golpistas. Mais do que mudar o dispositivo constitucional – como se a
desinformação sobre o art. 142 tivesse algum fundamento na realidade –, é
preciso difundir, explicar e consolidar o que a Constituição já prevê para as
Forças Armadas.
O segundo ponto refere-se à necessária
prudência sobre tema tão sensível. Ainda que se possa vislumbrar a
possibilidade de aperfeiçoamento da Constituição a respeito das Forças Armadas,
não se deve ignorar o cenário atual de desinformação, com reflexos sobre o
próprio Congresso. Colocar em tramitação, nos tempos atuais, uma PEC sobre as
Forças Armadas é comportamento de alto risco, rigorosamente temerário, que pode
suscitar não pequenos retrocessos. Com todas as ressalvas que possam ser
feitas, a Constituição de 1988 assegura, em relação às Forças Armadas, os
pontos essenciais para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito.
Não raro, tem-se a ilusão de que uma
alteração legislativa – no caso, uma Emenda Constitucional – pode ser a grande
solução para os problemas relativos a determinado tema. De fato, muitas vezes o
que faz falta é uma boa e equilibrada reforma legislativa, provendo um novo
marco jurídico. No entanto, quando a origem do problema não é o texto da
Constituição, alterá-lo não muda os termos da questão. Além de alimentar as
falsas percepções, atiça os oportunistas de plantão. É melhor que fique como
está.
O ‘técnico’ Tarcísio se curva ao
obscurantismo
O Estado de S. Paulo.
Sem demanda popular, contrariando o
consenso sanitário, a sanção à lei que derruba o passaporte da vacina só serve
à irresponsabilidade bolsonarista travestida de ‘liberdade’
Neófito em cargos executivos, o governador
de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tem surpreendido. Quem dera fosse só
positivamente. Contrariando sua reputação de técnico bem formado e
experimentado, Tarcísio sancionou uma lei descabida que proíbe a exigência de
comprovação da imunização contra a covid-19 para o acesso a locais públicos e
privados.
É difícil imaginar outra motivação que não
um pedágio a seu padrinho político, o ex-presidente Jair Bolsonaro. A extinção
do “passaporte da vacina” não era uma demanda popular e contraria as
recomendações da comunidade científica.
A exigência não é uma medida de exceção
imposta no pânico da pandemia. No Brasil, remonta ao começo do século 20. Num
Rio de Janeiro fustigado por surtos de febre amarela, peste bubônica, malária,
tifo, tuberculose e cólera, a campanha sanitária encabeçada por Oswaldo Cruz
levou o Congresso a aprovar a obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Após
a chamada Revolta da Vacina, a obrigatoriedade foi revertida, mas gradualmente
a cultura vacinal ganhou corpo, salvando milhões de vidas. Nos anos 70, a
obrigatoriedade das vacinas do Programa Nacional de Imunizações foi determinada
por lei. O atestado para matrículas escolares foi decisivo para erradicar
doenças especialmente virulentas na idade infantil. No início da atual
pandemia, o Congresso autorizou a vacinação compulsória, depois referendada
pela Suprema Corte.
Como se sabe, Jair Bolsonaro, mesclando seu
renitente obscurantismo com uma concepção obtusa e oportunista de liberdade
individual, encampou, num retrocesso de 100 anos, uma nova Revolta da Vacina.
Nesse caso, praticamente solitária. A população aderiu em massa à vacinação, e
os Estados aplicaram a obrigatoriedade, em conformidade à vontade popular: uma
pesquisa de 2021 mostrou que 65% da população era favorável ao passaporte e só
22% eram contra.
Note-se que, a rigor, ninguém é obrigado a
se vacinar. O Estado não pode tomar pessoas pelo braço e aplicar a agulha. Mas
todos têm a obrigação de não expor outras pessoas ao risco de contaminação. Por
estúpido que seja, as pessoas são livres para se infectar. Mas, numa sociedade
civilizada, não são livres para infectar outros. Assim, restrições ao ingresso
de não imunizados em estabelecimentos protegem o direito à saúde da
coletividade. Mas a nova lei de São Paulo, redigida pela ex-deputada Janaína
Paschoal e encampada por uma bancada bolsonarista, tolheu aos paulistas esse
direito.
A construção da governabilidade via
concessões a bases eleitorais e legislativas é do jogo político. Portanto, era
tolerável que no palanque Tarcísio engolisse teses bolsonaristas estapafúrdias
e é natural uma certa distribuição do poder após eleito. Mas o governador já se
mostrou capaz de traçar uma linha vermelha e rever posições em nome da
coletividade.
Malgrado certas exceções, ele evitou, por
exemplo, que São Paulo se tornasse um cabide de empregos para desqualificados
bolsonaristas defenestrados de Brasília. Para áreas-chave em que a “guerra
cultural” de Bolsonaro legou um rastro de destruição, como cultura ou educação,
nomeou secretários técnicos. Também desmontou cavalos de batalha bolsonaristas,
aprovando o acesso a remédios à base de canabidiol ou revendo recalcitrâncias
sobre as câmeras nas fardas policiais, e vetou uma lei que, na contramão das
boas práticas tributárias, reduzia o imposto sobre herança. Além disso, tem
buscado aliviar tensões com o presidente Lula da Silva para viabilizar projetos
de interesse de São Paulo.
Essas mostras de sensatez só tornam mais
surpreendente que, numa questão tão incontroversa como o passaporte de vacina,
Tarcísio tenha capitulado aos delírios de seu ex-chefe, numa inversão grotesca
do lema paulista: “Não sou conduzido, conduzo”.
Após eleito, Tarcísio disse que nunca foi
“bolsonarista raiz”. Já governador, afirmou que “a partir de agora vamos olhar
para frente, olhar para os interesses do Estado de São Paulo”. Mas, pelo visto,
esse “agora” tarda a chegar. Já passou da hora de o governador virar a chave e
entender que recebeu seu mandato para servir o interesse dos paulistas, e não
os de Jair Bolsonaro.
Um dia de caos no metrô
O Estado de S. Paulo.
É inaceitável que uma pane elétrica afete
tanta gente por falta de um plano de contingência decente
Na quarta-feira passada, os milhares de
paulistanos que usam a Linha 4-Amarela do Metrô de São Paulo para transitar
pela capital paulista foram prejudicados por uma pane elétrica que impediu a
circulação regular dos trens ao longo de todo o dia. É inaceitável que um
problema dessa natureza afete a vida de tantas pessoas em uma cidade como São
Paulo, que depende de um transporte público eficiente para não travar.
Foi um dia de caos. Muitas pessoas não
conseguiram chegar a seus destinos pela manhã. Os afortunados que conseguiram –
a duras penas – enfrentaram muitas dificuldades para retornar às suas casas no
fim da tarde. Só por volta das 20 horas a operação da linha foi normalizada.
O que se viu foram grandes aglomerações de
passageiros à espera do embarque em várias estações da Linha 4-Amarela. Na
estação Paulista, uma das mais movimentadas, uma pequena multidão não teve
alternativa a não ser sair à rua – até para escapar do ambiente claustrofóbico
– e ocupar parte da Rua da Consolação, o que impediu o livre trânsito de carros
e ônibus na região, para complicar ainda mais a fluidez do tráfego na
metrópole.
Já o que se ouviu foram inúmeras
reclamações de passageiros pela falta de informações e, principalmente, de
oferta de transporte alternativo. A concessionária ViaQuatro, responsável pela
operação da Linha 4Amarela, colocou ônibus à disposição dos passageiros, mas a
quantidade de veículos era claramente insuficiente para atender à demanda.
“Desci na Paulista e lá eles (os
funcionários da ViaQuatro) estavam nos encaminhando para a porta da estação,
onde nos colocariam em um ônibus com sentido à Avenida Faria Lima. Mas estava
um caos, tudo muito desorganizado”, relatou ao Estadão a publicitária Bruna
Oliveira. Para chegar ao local de trabalho, Bruna teve de pedir um carro por
aplicativo, o que a maioria dos usuários da linha não tinha condições de fazer,
e percorreu em uma hora o trajeto que, normalmente, dura 20 minutos.
Desde a inauguração, em 2010, a Linha
4-Amarela do metrô paulista é tida como uma das melhores linhas de metrô do
País. Fruto da primeira Parceria Público-Privada (PPP) assinada no Brasil, em
2006, a concessão é um caso de sucesso no setor de transportes. Mas tudo é
muito bom até algo dar errado.
Não se discute a qualidade da prestação do
serviço pela ViaQuatro, em geral, bem avaliada pelos próprios usuários. Mas não
basta que a empresa ofereça um serviço de boa qualidade no dia a dia, quando
tudo vai bem. É preciso estar preparada, com planos de contingência bem
dimensionados, para continuar atendendo os usuários mesmo quando algo sai do
controle, como foi o caso.
Restou evidente que a ViaQuatro precisa ter
um plano de continuidade muito melhor do que o atual, pois este não serviu à
população quando necessário, sabe-se lá por quê. Não é difícil dimensionar a
quantidade de usuários da linha.
Lições devem ser aprendidas pela empresa e
pelo governo de São Paulo, que deve começar a fiscalizar com mais rigor a
prestação do serviço pela concessionária.
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