terça-feira, 17 de março de 2009

Excomunhão eleitoral

Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO

A próxima reunião da comissão de ética do PT, na quinta-feira 19, vai tratar de um assunto que comoveu o país e no momento agita os bastidores do Congresso: o aborto. Trata-se de uma representação da Secretaria de Mulheres contra dois deputados petistas, Henrique Afonso (AC) e Luis Bassuma (BA), que insistem em ignorar uma resolução partidária em defesa da descriminalização do aborto. Elas querem a excomunhão partidária dos infieis, assim como o arcebispo do Recife excomungou fiéis católicos.

No momento em que uma mulher reúne condições efetivas de disputar a Presidência da República, a discussão parece meio fora de moda, mas nunca esteve tão atual como demonstram a história do aborto da menina (ela tem nove anos e foi estuprada pelo padrasto), a reação do arcebispo, e o contorno eleitoral que começa a ganhar no Congresso. A propósito, Dilma acha que essa "não é uma questão de foro íntimo, mas sim de saúde pública, e precisa ser regulamentada".

Radicalizadas, as posições ajudam a explicar até casos sem conexão aparente, como o poder do deputado Eduardo Cunha (RJ), aquele que manda e desmanda no PMDB da Câmara.

Afonso é pastor presbiteriano; Bassuma, espírita. Os dois integram a Frente Parlamentar em Defesa da Vida-Contra o Aborto, uma de um amontoado de grupos religiosos que em alguns casos chegam a reunir na Câmara evangélicos, como o bispo Rodovalho (DEM-DF), da Igreja Sara Nossa Terra, ao deputado carismático Miguel Martini (PHS-MG).

Paulo Fernando Melo da Costa, advogado de Afonso que se declara "da direita lúcida" promete levar "as beatas" para rezar o terço ou entoar hinos em frente à sede do PT.

É uma novidade. Questões morais e de consciência religiosa eram em geral tratadas, nos bastidores do Congresso, longe dos holofotes - a tramitação do projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo da então deputada Marta Suplicy foi ao menos uma vez barrada por um telefonema de bispo católico.

A multiplicação das correntes cristãs e o crescimento de carismáticos e evangélicos tornaram esses embates mais barulhentos. Os grupos se tornaram mais organizados e o confronto com um partido liberal no campo dos costumes, como é o PT, era só uma questão de tempo.

O que as mulheres do PT pedem é a reafirmação de uma resolução do 3º Congresso Nacional do partido, que votou pela descriminalização do aborto. "É necessário agir firmemente nas várias instâncias de decisão contra projetos que, ecoando as posições de grupos ultraconservadores, se contrapõem à luta histórica das mulheres e do PT pelos direitos sexuais e reprodutivos e autonomia das mulheres".

O 10º Encontro Nacional das Mulheres propôs também "a saída imediata dos parlamentares do PT que atuam em comissões estratégicas que tratam de questões relativas a direitos sexuais e reprodutivos, que, orientados por seus princípios religiosos e pessoais retrocedem direitos conquistados pelas mulheres e expressam posições contrárias às defendidas pelo PT".

Na defesa, o deputado Henrique Afonso recorre ao texto constitucional, segundo o qual "é inviolável a liberdade de consciência e de crença", e alega que, se a Secretaria de Mulheres pede ao partido a instauração de processo disciplinar contra ele "tão somente por expressar opinião pessoal, direito que me é assegurado pela Carta Magna, é ela quem está afrontado a Constituição".

Segundo o deputado, sua "posição firme e convicta contra a interrupção da gravidez nunca foi desconhecida " pelo PT, desde que sua filiação, em 1997, que "foi aceita, homologada (...) e nunca dantes a minha posição pessoal incomodou ou contrariou qualquer segmento" do PT.

Por isso - diz ainda - "me causa estranheza, nesta ocasião, a Secretaria de Mulheres afirmar que estou causando "aborrecimento" e "desapontamento" às mulheres petistas. O que mudou ao longo do tempo: minha crença ou a postura (do PT) em aceitar, tolerar e respeitar as diferenças e a diversidade"?

O advogado Melo da Costa não esconde que seu objetivo, com a manifestação de quinta-feira, é "expor a posição do PT sobre o aborto". Já as mulheres pedem também a "retirada de tramitação de todos os projetos de lei propostos por parlamentares do PT que prejudiquem o direito das mulheres de autonomia sobre seu corpo e sua sexualidade".

Entre esses projetos há uma CPI do aborto, para a qual os líderes evitaram indicar até agora os nomes. Mas o campo de batalha não está delimitado pelo aborto.

Há, de um lado, um Projeto de Lei complementar que criminaliza a homofobia; do outro, a deputada Iriny Lopes (PT-ES) incluiu um parágrafo, no projeto que cria o Ministério da Pesca, a constituição de um Conselho Nacional de Promoção da Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, para o horror das frentes "ultraconservadoras".

A Frente Parlamentar em Defesa da Vida estima em mais de 100 o número de seus integrantes e dos outros grupos específicos. Na prática, não mais de 30 são ativistas. Como um dos vice-líderes mais importantes do PMDB, o deputado Eduardo Cunha (Igreja Sara Nossa Terra) ajuda a fazer barulho em torno da questão moral. Em troca aumenta seu cacife na mesa de negociação política.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

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