Ocupar significa enfrentar a lógica antidemocrática do poder, redefinindo o papel do cidadão na ‘rua global’
Ocupar não é o mesmo que demonstrar. Muitos dos protestos do ano passado - Praça Tahrir, os indignados, Ocupe Wall Street (OWS) e outros - deixam nítido o fato de que ocupar significa estabelecer um novo território. Transformar o que era visto meramente como um espaço num território. Nesse processo, ocupar também cria um pouco de história.
Território é um vetor estratégico em todos esses tão diversos processos de ocupação. No sentido em que estou usando o termo, território é uma condição complexa na qual se insere a lógica do poder e da reivindicação, algo que implica muito trabalho para criar e não pode ser reduzido apenas à factibilidade elementar do espaço ou da terra. Assim, ocupar é um processo que reelabora, mesmo temporariamente, a frequentemente antidemocrática lógica do poder incrustada no território. E com frequência também redefine o papel dos cidadãos, na maior parte debilitados e fatigados depois de décadas de injustiças e desigualdades crescentes.
Na verdade, as ocupações têm revelado até que ponto a realidade do território vai além de seu significado predominante em todo o século 20: o do território de soberania nacional. Dependendo da região do mundo, durante um século ou mais a complexa categoria que é o território ficou restrita a um único significado: território de soberania nacional.
O movimento Ocupe Wall Street entrou num dos territórios estratégicos das finanças globais e, durante dois meses de trabalho duro e muita deliberação coletiva, estabeleceu um novo território - físico e conceitual - com sua própria lógica de organismo e representação descentralizados. O movimento Ocupe Oakland se inseriu num território estratégico do comércio global em novembro, quando temporariamente fechou o porto da cidade, o quarto maior dos Estados Unidos.
A maneira como a Praça Tahrir foi usada durante a revolução egípcia - o trabalho de erigir um acampamento e mantê-lo habitável e pacífico durante vários meses - da mesma maneira transformou a praça num outro tipo de território. Los Indignados, na Espanha, não realizaram apenas manifestações: eles estabeleceram um acampamento com múltiplas funções.
Os estudantes que ocuparam a Universidade de Porto Rico um ano atrás durante dois meses, cercados pelo Exército, criaram algo parecido a uma sociedade e economia alternativas, cuidando do seu próprio sustento, ensinando várias habilidades um ao outro.
Essas e tantas outras ocupações exigiram trabalho e estratégia. Diria que é um movimento social multilocalizado, criado a partir do cruzamento de um modo político global e das especificidades e história locais. Cada um desses lugares tem a própria genealogia de ações, histórico de violência e libertação e geografia do poder. Mas nesta atual era global algumas condições estruturais estão presentes em mais e mais países: em todos eles observamos o crescimento das desigualdades e a expulsão das jovens gerações da classe média de um projeto de vida de classe média.
No seu início, a criação do território nacional envolveu conquistar autonomia de uma potência dominante - como ocorreu com os Estados Unidos no princípio e também no caso dos movimentos de independência na África e muitas outras lutas em todo o mundo. Esses foram momentos importantes, quando a lógica do poder e da outorga de poder coincidiram numa tentativa de se criar sistemas políticos e socioeconômicos mais igualitários. Como resultado, surgiram governos de certa maneira receptivos às demandas das classes médias emergentes.
Com mais frequência, contudo, essas primeiras lutas para criar território próprio foram frustradas por elites que se apoderaram abusivamente do poder, deixando os cidadãos empobrecidos e sem nenhum direito de representação. Essa decadência não seria apenas interna, contudo. Estabelecer o próprio território também pode levar à colonização dos antigos habitantes do lugar ou, no decorrer do tempo, significou entrar furtivamente no território de outros. O que nos leva de volta às contradições do território nacional: alguns Estados-nação foram criados no rastro de vastas geografias imperiais de exploração e dominação. Num sentido importante, contudo, territórios colonizados são constituídos por meio de uma lógica distinta daquela do território feito nação, que é impulsionado, pelo menos no início, pela lógica da autodeterminação. Hoje, era em que vemos a decadência do Estado liberal, a lógica do poder não coexiste com a lógica da outorga de poder - ela coexiste com o empobrecimento crescente da classe média e a perda dos direitos do cidadão.
A decadência do “projeto nacional” em parte decorre da emergência de vetores territoriais diferentes. Observamos a ascensão de novos agrupamentos de uma miscelânea de território, autoridade e direitos outrora firmemente assentados nas estruturas nacionais. O espaço operacional das empresas globais é um agrupamento de uma miscelânea de múltiplos territórios nacionais. Assim também é a rede das cidades globais. Esses agrupamentos emergentes na maior parte atravessam o binário do “nacional versus global”. Os movimentos “Ocupe” também são agrupamentos emergentes de uma miscelânea de vários territórios nacionais (e globais). Sua reivindicação do espaço público é uma resposta às deficiências cada vez mais palpáveis da lógica do Estado-nação.
Esses movimentos lançaram um processo emergente que considero como da “rua global”, um lugar para se criar o social. Esse modo de formação do público é bem diferente da tradição europeia do espaço público, que é o lugar para implementar práticas que já se tornaram um ritual. O movimento “rua global” liberta o território, como categoria e como capacidade; ele transforma a rua num espaço para reformular o social e o político por aqueles que não têm acesso aos instrumentos de poder estabelecidos dentro dos limites do território de soberania nacional. É por isso que os acampamentos no Cairo, Nova York e em todos os outros locais são um elemento crucial em meio às mudanças mais profundas que estão desestabilizando a territorialização nacional da vida política e social. E é por isso que as tentativas para fazer acampamentos na Síria e no Bahrein são importantes, mesmo se fracassarem.
O espaço mais amplo permitindo essa ocupação em múltiplos lugares é a rede das cidades globais em todo o mundo, cujo número vem aumentando, em parte como resultado das necessidades territoriais maiores do capital global e das finanças globais. E aqui reside uma interessante dialética entre o crescimento das cidades globais e o crescimento dos movimentos de ocupação. A cidade surge como um espaço em que os impotentes podem fazer história; não é o único espaço, mas é um espaço crucial. Seja no Egito, nos Estados Unidos ou qualquer outro lugar, é importante que o objetivo dos ocupantes não seja o de arrebatar o poder.
Inversamente, eles estiveram e estão engajados em trabalhar para a cidadania, expor as falhas e os erros da política e da sociedade. No meu livro Territory, Authority, Rights (Território, Autoridade, Direitos - 2006), abordei essa questão de como os impotentes podem fazer história e, se o conseguirem, como poderão fazer isso sem se tornar necessariamente pessoas com o poder nas mãos. Isso nos mostra que a impotência não é simplesmente uma condição absoluta que pode ser nivelada para se tornar ausência de poder. O fato de as pessoas se tornarem presentes e, importante, se tornarem visíveis umas para as outras, pode alterar a natureza da sua impotência. Com base em certas condições, a impotência pode se tornar algo complexo, e com isso quero dizer que ela pode conter a possibilidade de criar o político, o cívico, ou a história.
A violência com que várias dessas ocupações pacíficas têm sido confrontadas pela polícia e pelos soldados do Exército é indicação de quão ameaçadora é a ocupação. E o quão difícil e desordenado tem sido neutralizar o projeto dos ocupantes nos mostra que o Estado tem que trabalhar para restaurar o território no seu antigo formato e se reinserir na lógica mais antiga.
Tradução de Terezinha Martino este texto é parte de um ensaio da autora para a revista Artforum
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
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