- Valor Econômico
Epidemia se alastra e governo age a reboque
Ao chegarem as notícias de que uma epidemia assolava diversos países, o primeiro pronunciamento da autoridade máxima da saúde no Brasil foi tranquilizar a população: “Até agora nenhum caso suspeito nos chegou”. Depois de analisar os dados disponíveis, constatou que não havia motivos para pânico. E garantiu: “faremos tudo quando pudermos” para evitar o contágio da doença.
Diante do crescimento acelerado do número de casos ao redor do mundo, médicos recomendavam que o governo deveria empreender uma rigorosa fiscalização dos passageiros brasileiros e estrangeiros que chegavam principalmente da Europa, onde a epidemia parecia fugir do controle.
Alguns especialistas, porém, criticavam a histeria dos meios de comunicação em relação à doença: embora de rápida disseminação, tratava-se de mais um surto de gripe que de tempos em tempos assola a humanidade, e isso não deveria ser motivo de preocupação, porque a letalidade da doença em geral é baixa, restrita às pessoas muito idosas e debilitadas.
A propagação do vírus no exterior, intensamente repercutida pela imprensa, deixou todos apreensivos. Navios com passageiros infectados começaram a ser proibidos de aportar em várias partes do mundo, deixando à própria sorte milhares de pessoas. Um grupo de brasileiros chegados do exterior foi colocado em quarentena e determinou-se a inspeção nos pontos de chegada e partida. Com a identificação dos primeiros casos de contaminação em território nacional, o Brasil entrava no mapa da mais nova pandemia.
Pouco menos de duas semanas após a detecção dos primeiros casos, a nova enfermidade começa a mostrar a que veio. Cidades e cidades começam a informar ao governo a ocorrência de surtos, principalmente em locais com presença de grande número de pessoas: órgãos públicos, escolas, quartéis, presídios.
Os casos, contados inicialmente um a um, passam rapidamente às dezenas, centenas e depois milhares, numa progressão geométrica. Para a maioria, os sintomas são de uma gripe comum, porém muito forte, mas as mortes logo começam a atingir grandes proporções. Médicos vão à imprensa recomendar que as pessoas redobrem os cuidados com a higiene e evitem aglomerações.
À medida em que a epidemia se alastra, o cotidiano das pessoas começa a ser afetado: o sistema de transporte público para por falta de empregados, o efetivo policial se reduz e órgãos públicos ficam às moscas. Cinemas, teatros e museus decidem suspender suas sessões. As ruas se esvaziam e, assim, vários estabelecimentos comerciais e industriais fecham as portas, confirmando que a economia acabava de ser, ela própria, contaminada.
A capacidade de atendimento dos hospitais chega ao seu limite: lotados de pacientes contaminados, não há mais leitos para acolher grávidas em trabalho de parto ou outras enfermidades. Pressionado, o Poder Executivo finalmente se mexe e passa a contratar mais médicos em caráter emergencial. O governo, no entanto, reluta em tomar qualquer providência em relação às escolas públicas, argumentando que a situação estava sob controle - enquanto isso, os estabelecimentos privados suspendem suas aulas por conta própria. Para mostrar que a pandemia não faz qualquer distinção, auxiliares do presidente da República começam a apresentar os sintomas da moléstia.
Com a queda na demanda, setores empresariais pressionam o ministro da Fazenda por providências para prover crédito e capital de giro para suas atividades. A população se indigna com comerciantes que aproveitam do medo coletivo para cobrar preços aviltantes por medicamentos, produtos de higiene e gêneros de primeira necessidade. Em poucos dias, as cidades começam a enfrentar escassez de alimentos.
O contágio se espalha e fica claro que o país não estava preparado para reagir à pandemia. Reunido com o ministro da Justiça e os comandantes militares, o presidente determina a criação, em caráter de urgência, de postos médicos improvisados em clubes e agências bancárias e a instalação de um grande hospital provisório com mais leitos para os enfermos. A população mais pobre, vivendo em precárias condições de salubridade, é a mais afetada: “a totalidade desses infelizes morrem à míngua, entregues à voraz epidemia, por falta de recursos, sem quem os acuda, sem médico, sem um real nem posto de socorro”. A situação chega ao ponto de começar a faltar pessoal para enterrar os mortos nos cemitérios.
Pressionado, o presidente decide demitir a equipe que coordenava os esforços na área de saúde e decretar feriados para conter a proliferação da doença. No Congresso, deputados e senadores entram num recesso branco de duas semanas, enquanto o país está à espera da votação de créditos extraordinários para cobrir as despesas extras com o combate à pandemia.
No auge, os jornais contam uma média de 650 mortos por dia apenas na capital federal. Mas, para alívio de todos, notícias começam a chegar dizendo que no exterior a epidemia declina. Em algumas semanas, como por milagre, a gripe começava a retroceder por aqui também. A vida aos poucos retorna ao normal, mas os danos sobre as famílias e a economia do país se fazem sentir em toda parte e por muito tempo.
O relato acima foi todo baseado em reportagens do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, entre setembro de 1918 e janeiro de 1919. Embora sem números precisos, estimativas apontam que a gripe espanhola tenha matado em torno de 35.000 pessoas no Brasil - aproximadamente 0,1% da população brasileira naquele tempo.
Segundo a crítica da época, “muita lágrima se teria estancado, muita dor se teria aliviado, muito coração se teria consolado” se o governo tivesse tomado medidas duras assim que se deu conta do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos. O corte nas verbas da saúde nos anos anteriores, o excesso de otimismo de que a epidemia não chegaria aqui e a desorganização do serviço público na resposta à expansão da doença foram apontados como os culpados por milhares de vidas perdidas e grandes prejuízos ao país.
Pouco mais de 100 anos depois, fica o alerta para as autoridades atuais.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
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