Folha de S. Paulo
É hora de responder ao golpismo com a lei e
a necessária repressão
"Intervenção federal" – as duas
palavras escritas nas faixas desfraldadas por arruaceiros bolsonaristas
pretendem significar "golpe militar". O projeto do golpe, porém,
ficou para trás. A escumalha iludida por seu líder funciona como massa de
manobra. Bolsonaro a
emprega para outra finalidade.
O ainda ocupante do Palácio do Planalto
sonhou com o golpe desde que, no primeiro dia, vestiu a faixa presidencial. A
trama golpista foi barrada pela resistência das instituições e, em especial,
pela recusa dos altos comandos militares a participarem da aventura
tresloucada.
O golpe morreu uma vez em novembro de 2020, quando o então comandante do Exército, Edson Pujol, declarou que sua Força não é instituição de governo nem tem partido. Morreu mais uma vez a partir de abril de 2021, quando os novos chefes das três Forças aplicaram discretamente, sem qualquer declaração pública, o princípio expresso pelo demitido Pujol.
Bolsonaro não desistiu, engajando-se na
tentativa de ressuscitar os mortos. O plano derradeiro era tirar proveito da
desastrada tática conciliatória do TSE, que aceitou incorporar representantes
militares no processo de fiscalização da integridade das urnas eletrônicas. Não
funcionou. Os militares designados pelo Ministério da Defesa empenharam-se no
esporte da simulação, rejeitando as alternativas de confirmar ou impugnar a
lisura do sistema de voto. Então, o golpe morreu pela terceira vez.
A quarta e última morte deu-se na noite de
26 de outubro. Ali, convocados pelo presidente para uma reunião extraordinária,
os comandantes militares não aceitaram alinhar-se à chicana desesperada de
denúncia do alegado boicote de rádios às inserções eleitorais da campanha
bolsonarista.
Bolsonaro sabe que a oportunidade passou. O
golpe virou arruaça. Ele e seu círculo golpista mais próximo patrocinaram os
bloqueios rodoviários com uma meta distinta: pressionar as instituições a
conceder ao presidente e seus filhos uma garantia de impunidade judicial. A
chantagem baseia-se na ideia de tomar o Brasil como refém e objeto de
intercâmbio. No fim, em troca da negociação de uma espécie de anistia prévia,
Bolsonaro concederia à nação o retorno à vida normal.
Para evitar um desfecho oposto ao
planejado, o chantagista organizou uma operação de duplicidade informacional.
Numa ponta, evoluiu do silêncio à declaração ambígua, de leitura aberta,
emitida na terça-feira, e dela ao apelo direto pelo fim dos bloqueios, emitido
no dia seguinte. Na outra, os gerentes de suas redes sociais insistiram na
conclamação ao fechamento das estradas, indicando que a mensagem genuína do
líder não sofrera reversão. Por essa via tortuosa, Bolsonaro tenta livrar-se da
acusação de subversão da ordem democrática e, simultaneamente, conservar o
ímpeto do movimento subversivo.
A operação está cravejada de incertezas e
riscos. Como impedir que a duplicidade provoque uma cisão definitiva no
bolsonarismo, separando a facção mais radicalizada da massa dos seguidores?
Como controlar o grau de radicalização, evitando desfechos inesperados capazes
de cancelar a negociação institucional? O apelo à substituição dos bloqueios
por manifestações golpistas "pacíficas" foi uma tentativa de
quadratura do círculo, não uma renúncia à estratégia da chantagem.
O objetivo de Bolsonaro é mostrar força,
poder de mobilização, para vergar o sistema de justiça, elevando-se acima da
lei. Se conseguir colocar as instituições de joelhos, conservará a unidade da
direita em torno da sua liderança. Caso contrário, a direita se fragmentará –e
só restará ao chantagista uma franja incapaz de conviver com as regras do jogo.
É hora de responder ao golpismo com a musculatura da lei, acompanhada pela necessária repressão. Os extremistas que sonham com o cassetete da ditadura precisam conhecer o cassetete da democracia.
*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
3 comentários:
Devo reconhecer que o colunista me surpreendeu muito positivamente neste texto! Não acreditava que ele fosse capaz duma análise tão lúcida... Parabéns a ele e ao blog que divulga seu trabalho! Bolsonaro quer elevar-se acima da lei, mas na verdade vive abaixo do nível do esgoto, nos subterrâneos com seus ratos milicianos e ratazanas como Zambelli, Damares e Bia Kicis.
Pois é,concordo com o anônimo.
Por falar em cassetete da ditadura. Um amigo meu que pertenceu ao MEP me contou que quando esteve preso foi torturado e uma das formas de tortura consistia na introdução de um cacetete elétrico no ânus dele para aplicação de choque em suas entranhas.
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