domingo, 3 de março de 2024

Eliane Cantanhêde – Entre o céu e o inferno

O Estado de S. Paulo

Freire Gomes está entre o céu e o inferno no golpe, o que não pode é intervenção corporativista do Superior Tribunal Militar; logo, o exemplo cruel de corporativismo no julgamento de oito militares que fuzilaram covardemente um músico e um catador de latinhas assusta e irrita

Enquanto todas expectativas em Brasília estavam voltadas para o depoimento do dia seguinte do ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, à Polícia Federal, o Superior Tribunal Militar (STM) dava um exemplo lamentável e cruel de corporativismo no julgamento de oito militares que fuzilaram covardemente o músico Evaldo Rosa e o catador de latinhas Luciano Macedo, no Rio, em 2019.

Freire Gomes, que depôs durante oito horas à PF sobre a tentativa de golpe no governo Jair Bolsonaro, está numa espécie de limbo, de onde pode ir para o céu ou para o inferno, dependendo do que disse, do que não disse, das declarações de outros militares e das provas contundentes em mãos da polícia. Ou seja, seu destino depende do que realmente aconteceu e de qual foi a sua participação em tudo aquilo.

Para a atual cúpula militar, que é legalista, Freire Gomes estava do lado certo da história e vai para o céu, por resistir às pressões de Bolsonaro e se negar a jogar as tropas numa aventura golpista, diferentemente do então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, que já sofreu busca e apreensão da PF e está numa posição muito mais complicada e correndo risco maior de parar no inferno.

Sem querer, generais, coronéis e capitães do círculo íntimo de Bolsonaro produziram provas a favor de Freire Gomes e da tese do atual Comando do Exército. Em trocas de mensagens recolhidas pela PF, o capitão Ailton Barros reclama que o então comandante não estava aderindo ao golpe e o general Braga Netto concorda: “Omissão e indecisão não cabem a um combatente”. Barros sugere: “Então, vamos continuar na pressão (...), vamos oferecer a cabeça dele aos leões”. E Braga Netto conclui: “Oferece a cabeça dele. Cagão”, ataca o ex-vice-presidente.

Duas, digamos, curiosidades. A primeira é que o guru da extrema direita brasileira, Olavo de Carvalho, que já morreu, usava esse mesmo palavrão para atacar os generais, inclusive Braga Netto, para atiçar a radicalização contra a democracia. A segunda é que o tal capitão Ailton, valentão, bastante amigo de Bolsonaro e ativo na defesa do golpe, foi expulso do Exército há décadas e foi recentemente preso na operação contra a falsificação de atestados de vacina, inclusive da filha de Bolsonaro. “Tutti buona gente.”

E a PF, que destino quer dar a Freire Gomes, o céu ou o inferno? A favor do céu, além de mensagens e ataques bolsonaristas desse tipo, há também a versão de uma reação contundente dele contra Bolsonaro, numa reunião em que a tese do golpe teria sido colocada aos comandantes militares. Um não vigoroso, digamos assim. Já a favor do inferno, há o fato de que Freire Gomes permitiu e manteve o acampamento golpista em torno do Quartel General do Exército, além de uma mensagem que ele recebeu do então ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, comprovando que ele conhecia a minuta do decreto golpista e não denunciou o esquema e a evolução do golpe. Prevaricação?

Freire Gomes pode unir pontas soltas e dar um formato a tudo isso, mas é importante que as Forças Armadas mantenham uma posição mais legalista do que corporativista, mais democrática do que golpista. Logo, o julgamento iniciado no STM sobre os assassinatos do músico e do catador assusta e irrita.

O voto do relator, brigadeiro Carlos Augusto Amaral de Oliveira, foi pela troca de crime doloso para culposo e redução das penas dos oito militares, de 28 e 31 anos para três, portanto, em regime aberto. Ele alegou que os criminosos agiram em “legítima defesa” e que não havia intenção de matar. Um escândalo! Quem dispara 257 tiros sem intenção de matar? E como foi “legítima defesa”, se as duas vítimas estavam desarmadas? Evaldo ia para um chá de bebê com a família, Luciano foi tentar ajudá-lo após os tiros, morreu por ter empatia. Mas o ministro revisor, José Coelho Ferreira, acompanhou o relator.

O julgamento foi suspenso pela ministra Maria Elizabeth Rocha – aliás, a primeira mulher a assumir uma cadeira no STM e a primeira a presidi-lo em 206 anos –, mas nada poderia ser pior para o tribunal, a Justiça Militar e o momento já tão difícil para a imagem das Forças Armadas. Nessas horas, aumentam a dúvida sobre uma justiça exclusiva para militares e uma certeza: ah!, se não fosse o Xandão?

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Um viva ao Xandão!