- O Globo
Vertentes conservadoras são pouco estudadas. Dá-se preferência ao caráter épico das propostas revolucionárias
Nos anos 1960 do século XX, há 50 anos, surgiram concepções e movimentos que interpelaram tradições conservadoras de direita e de esquerda. O ano de 1968 foi especialmente quente, mas, como assinalou Marcelo Ridenti, os tremores que agitaram as sociedades nem sempre se deram com a mesma intensidade num ano preciso. Assim, os marcos cronológicos daquela época agitada ainda dividem os especialistas.
O epicentro do terremoto situouse nos EUA, porém, se estendeu com diferentes características por quase todo o mundo, alcançando a Europa, Ásia e América Latina.
Brotou o movimento das mulheres, questionando a autoridade masculina, reivindicando igualdade de direitos na economia e nas relações afetivas; exigindo o compartilhamento do trabalho doméstico e da educação dos filhos; o controle sobre a reprodução biológica e o direito de as mulheres interromperem por sua vontade a gravidez. Novas leis deveriam autorizar e proteger a emancipação feminina.
Apareceu o chamado poder jovem. Nas escolas e universidades, os jovens questionavam as autoridades consagradas. As relações hierárquicas foram desafiadas. Interdições insensatas, negadas. Proibições, inquiridas. Os estudantes recusavam a lógica excludente de um saber e de um poder esclerosados, incapazes de dar conta dos seus interesses e indagações. Nos EUA, já ninguém queria ser mutilado ou morrer nos arrozais vietnamitas. Na China, a supremacia do Partido Comunista foi posta em questão. Na Europa, no “maio francês” os estudantes armaram barricadas nas ruas. Logo depois, uma greve geral operária contestou a ordem do capital. O general De Gaulle murmurou: trata-se de um chienlit (bagunça). Bagunçada e injusta, gritaram os estudantes, é a desordem que seu governo representa e defende.
Vieram à luz movimentos identitários. Os negros americanos assumiram um papel destacado. Através da luta pelos direitos civis, liderada por Martin Luther King Jr., reivindicaram o fim da discriminação racial, considerada inconstitucional; numa outra via, os Panteras Negras, de Bobby Seale e Huey Newton, e os muçulmanos radicais, de Al Hajj Malik Al-Shabazz, o Malcolm X, propunham o enfrentamento armado: que os brancos fossem para o diabo com seu racismo. Caberia aos negros fundar repúblicas próprias, onde pudessem viver em paz.
Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o movimento dos povos indígenas que viviam no território dos EUA. Vítimas de genocídio, invisíveis há séculos, levantavam-se, exigindo cidadania.
É verdade que, entrelaçados com os novos movimentos, reiteravamse propostas de violência. O Che Guevara, morto na Bolívia, era homenageado nas manifestações. A luta do povo vietnamita recebia a solidariedade geral. Contudo, estas associações não chegaram a apagar a evidência de que estava surgindo um novo paradigma de luta social, mais fundado na conquista de direitos do que na tomada do poder; mais na persuasão do que na eliminação dos adversários; mais na afirmação e aprofundamento dos valores democráticos do que na ditadura política; mais na organização autônoma das gentes do que na filiação às organizações tradicionais de partidos e sindicatos.
Houve um momento em que tudo parecia possível, a renovação radical do cotidiano e do poder parecia ao alcance das mãos.
Havia ali, no entanto, limitações imprevistas.
A força do conservadorismo — de direita e de esquerda — fora muito subestimada. Até hoje as vertentes conservadoras são pouco estudadas. Dá-se preferência ao caráter épico das propostas revolucionárias, subestimando-se as forças da permanência e da inércia. Ora, foram elas que predominaram, nos EUA, na França, na Tchecoslováquia, na China, no México e no Brasil do AI-5.
Evidenciou-se o caráter fragmentado dos novos movimentos. Eram fortes em seus vetores específicos, mas frágeis na capacidade de coordenação; fortes na auto-organização dos interessados, mas fracos na capacidade de aglutinação e de agregação de outras correntes; fortes na defesa dos interesses específicos, fracos na perspectiva de construção de programas comuns que disputassem a hegemonia na sociedade global.
Assim, superados pelas forças conservadoras e pelas próprias fraquezas e limitações, os novos movimentos sofreram derrotas sucessivas.
Suas questões, contudo, permaneceram alimentando lutas que iriam, mais tarde, registrar ganhos significativos, como as leis que atualmente, em muitas sociedades, protegem a interrupção voluntária da gravidez, os direitos civis dos negros, os direitos de assumir suas preferências sexuais, além de inovações no âmbito da educação e das relações afetivas.
Ficaram para a reflexão a necessidade de melhor compreender a resiliência do conservadorismo social e político e o potencial e os limites destes novos movimentos, a desafiar a imaginação dos não conformistas e dos que desejam ainda mudar a ordem existente.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF
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