Vale lembrar: no jogo entre governo e base aliada pesa o fato de que o líder desta é indemissível
Em entrevista a um programa de televisão, nessa última semana, o governador do Ceará, prócer do Partido Socialista Brasileiro - componente da assim chamada "base aliada" do governo -, deu sua versão a respeito do princípio da gratidão na política. Segundo seu contributo doutrinário, a presidente Dilma Rousseff deveria retribuir o apoio dado a sua eleição pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lançando-o candidato a sua sucessão no ainda longínquo ano de 2014. O estímulo à gratidão alheia, para os pessimistas, pode ser considerado um traço não incomum da natureza humana. Não será, com efeito, difícil encontrar em François La Rochefoucauld ou em Jean de La Fontaine, moralistas do saudoso século 17, suporte para tal sentimento.
Há, contudo, além de desencanto antropológico, sinais de patologia política na coisa. Um aliado contribui para a reativação de uma das suspeitas lançadas durante o processo eleitoral, a de que se preparava, na altura, um interregno. Suspeitar é humano, mas se plano havia, há que se suspeitar também de parvoíce, pois haveria que combinar as coisas com os eleitores, com quatro anos de antecedência, e apostar na possibilidade de um cenário no mínimo curioso: Dilma Rousseff deveria fazer um governo à la Quincas Borba: a vida não sendo tão boa, não é de todo má. Segundo a prescrição emanada do Cosme Velho, seu governo não deveria ser nem muito bom e nem uma ruína, capaz de macular as chances futuras do seu patrono.
De qualquer forma, antecipar a sucessão parece ser coisa de inimigos. Tem-se aí um indício de que algo está fora de lugar. O gesto do governador pode ser tomado como um estímulo para refletir a respeito da distinção entre amigos e inimigos. De modo menos abstrato, pode-se pôr a coisa nos seguintes termos: o que é e faz a oposição, e quem a exerce?
A seguir o manual do bom senso, a oposição é uma prerrogativa dos derrotados em 2010. Derrotados curiosos, pois, apesar da imensa popularidade do principal apoiante da candidata vitoriosa, foram capazes de amealhar suculentas dezenas de milhões de votos, com vitórias em pontos importantes do País. Passado o pleito, a oposição oficial nunca esteve à altura de sua façanha. Ganhou notoriedade com a exibição de suas querelas internas, foi assaltada pela razia imposta pelo prefeito de São Paulo e desapareceu. Não estivessem vigentes os institutos constitucionais de 1988, dir-se-ia que os tipos foram para a clandestinidade. Fica à espreita dos deslizes comportamentais dos vitoriosos que, por não serem infrequentes, dão-lhe algum oxigênio. Ignora-se o que pensa a respeito do País e o que tem a dizer à multidão de seus eleitores.
É da natureza dos sistemas políticos com alguma dose de competição a existência de oposições. Sabemos que as há mesmo em sistemas de baixa - ou nula - competitividade. Que dirá do nosso, cuja competitividade é sempre decantada por numerologia ufanista?
A oposição real pode ser encontrada onde era suposto que ela não estivesse. A "base aliada" é um celeiro de descontentes e, o que é mais grave, ambiente assolado pelo princípio da chantagem. A base do modelo político em curso sustenta-se na necessidade da grande coalizão parlamentar e partidária de apoio ao (ou, agora, à) presidente. Por maior que seja a magnitude da vitória eleitoral presidencial, a diversidade brasileira, acolhida pelos fundamentos do sistema eleitoral (nada de errado com isso, em princípio) torna pouco provável a eleição concomitante de maioria parlamentar comparável. Aqui, como alhures, a inevitabilidade das coalizões se faz presente, como condição de - com perdão antecipado pelo uso do termo - "governabilidade". Até aqui, nada de patológico ou de preâmbulo para danação eterna.
Há diversas ordens de problemas, presentes no arranjo implantado no País após a redemocratização da década de 80; um arranjo emergencial, cuja "teoria" ou "doutrina" lhe foi posterior na ordem do tempo. Há ali um dilema que lhe é inerente, a consistir no fato de que "governabilidade", tal como a ideia é veiculada, está associada à formação de maiorias parlamentares disciplinadas, sem considerar o dano infringido pelo processo ao programa substantivo de governo, tal como sufragado pela maioria dos eleitores. Há, pois, uma tensão entre a busca de docilidade parlamentar e a capacidade de execução do governo. Governar cada vez mais se converte em exercer "coordenação política" sobre uma base ampla e de baixa confiabilidade.
O dilema aprofunda-se no governo atual. A principal força de oposição potencial e real está instalada na "base aliada". Com um agravante: seu líder incontestável ocupa posição indemissível, posto que no exercício da Vice-Presidência da República. A quebra da coalizão, mais do que risco político, o que é da vida, pode configurar problemas mais graves de natureza institucional. O camarada Lenin, a certa altura e com brilho, designou a confusão como "dualidade de poder". Ele gostava da coisa, mas, cá entre nós, trata-se de algo que sempre acaba mal.
Como se bem diz em Portugal, o sarilho está posto. Para isso é que se elegem governos? Para que despendam a maior parte de seu tempo e energias a tentar governar a si mesmos? Para fazer da "coordenação política" sua principal atribuição? Há que pensar nos limites dessa forma de governar, segundo a qual a busca de apoio para executar um programa exige sua descaracterização. O "presidencialismo de coalizão" é a forma institucional do arcaísmo, instalado no processo político de condução do País. Como é possível que um dos personagens mais sinistros da história republicana tenha papel relevante na definição da política de sigilo de documentos? Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal educa a República e dá lições a respeito da importância da liberdade pessoal (essa frase é séria). Assim não dá.
Renato Lessa é professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense, pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto Ciência Hoje
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
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