Um prefeito que tenha imaginação bem poderia entender que junho de 2013 deu uma grande lição aos governantes, e adotar uma medida inteligente: abrir, dois dias por ano, o espaço público para grandes manifestações políticas. Com data marcada, mas organizadas por entidades independentes ou, mesmo, não organizadas, só com algumas regras básicas de civilidade. Seria uma forma de dar vazão, propriamente política, a tudo o que é protesto ou projeto. Seria uma forma de aprendermos a traduzir em linguagem política nossos descontentamentos ou anseios. Seria uma forma de ocupar o espaço público, geralmente utilitário, como festa. Seria uma forma de aprendermos a fazer política como um espaço de prazer, de alegria - repito: de festa.
Porque este foi um dos lados das recentes manifestações. Em meio a dias de violência de manifestantes (numa primeira fase, mas sempre lembrando que a grande maioria deles foi comedida), um ou mais dias de violência policial (o fatídico 13 de junho, em São Paulo) e dias de violência contra prédios e militantes, houve a grande manifestação, absolutamente pacífica, também na capital paulista, do Largo da Batata. E outras, em outras cidades. A sensação de quem esteve é exultante. Os participantes a descrevem em linguagem que me levou a falar em epifania, em revelação. (Curiosamente, os amigos do Rede Sustentabilidade não gostam do termo; mas eu o mantenho). Porque se manifestava, a seus cinco sentidos, uma apropriação das ruas e avenidas pelo cidadão, melhor ainda, pelo ser humano; lá onde passam carros, ônibus e caminhões, lá onde há regras rígidas de circulação, lá onde a morte ronda constantemente sob a forma de atropelamentos e colisões, triunfou brevemente a lentidão do andar, o prazer do flanar, a alegria do encontrar.
Foram algumas janelas de vida feliz num mês ou dois que conheceram momentos de violência inaceitáveis. Para muitas pessoas, esse tipo de manifestação, que começa com o 1968 francês e irrompe de vez em quando mundo afora, sem causa determinada ou visível, deixa como único legado a festa. Pode ser pouco. Eu, pessoalmente, acho que só isso é pouco: quem bota o mundo de cabeça para baixo não deveria voltar, rápido demais, à rotina. Um carnaval pode fazer vislumbrar que outra experiência de vida pode existir. Mas é este momento "happening" que propicia a revelação. Se muitos apenas se divertem - se alguns até vivem esse dia como uma balada um pouco diferente - outros podem perceber, aí, que dá para reivindicar juntos. E isto é uma das coisas de que o Brasil mais precisa.
Tirar a política da melancolia e da resignação
Porque nosso hábito é o da queixa individual, que nem chega a ser reclamação. Uma vez, quando um avião que seguia para São Paulo atrasou a ponto de ficar claro que pousaríamos em Guarulhos e não em Congonhas, vi uma fila de passageiros se queixar no balcão da companhia, mas sem unirem as vozes. Vários insultaram os funcionários - e depois, mansos, embarcaram para o aeroporto indesejado. Poucos anos depois, porém, outra experiência redimiu a primeira: vi uma moça reunir cinco ou seis dos passageiros, reclamar delicada mas firmemente com a companhia - e conseguir de volta a aeronave que estava sendo desviada para outro destino. A diferença está numa única palavra: organização. Incluí o depoimento dela, a médica Claudia Coutinho, no programa "A liberdade de organização", que fiz para a TV Futura.
Pode a organização nascer de uma festa? Pode. É preciso unir reclamações. Mas é necessário, sobretudo, sabermos que reclamações dão resultado, desde que feitas em conjunto. Quem se reúne tem mais êxito do que quem se divide. Nossa sociedade é individualista demais. Saber se unir é, para nós, prioridade. Nunca venceremos a corrupção enquistada nos castelos políticos se não desenharmos unidades alternativas a eles.
Agora, organizar em tom de festa é bom. É algo que o Brasil sabe fazer. Sempre se comenta que o carnaval, nossa festa com mais ares de bagunça, é na verdade um prodígio de organização. E no futebol, o esporte mais querido, o esporte que identificamos com a nacionalidade, os jogos começam na hora certa, sem atraso. Dá para misturar alegria e organização. Aliás, se pusermos alegria no convívio, no estar-juntos, teremos maior eficiência, que depende de sermos organizados. E, para completar, lembremos que os norte-americanos dizem "Let us get organized", Vamos nos organizar, quando querem dizer: este problema não pode ser resolvido por pessoas sozinhas, então nos juntaremos para enfrentá-lo.
Volto ao prefeito com imaginação. Uma festa das reivindicações, em que grupos grandes e sobretudo pequenos, até mesmo indivíduos, exponham suas críticas e propostas, ocupando avenidas ou praças da cidade - de qualquer cidade -, pode ser a ocasião de dar voz aos mil pequenos descontentamentos que nos acostumamos a calar. Dia a dia, engolimos frustrações com a baixa qualidade de nossa vida pública, de nossos serviços públicos. Não falar já é ruim. Não ver saída para problemas cruciais só agrava uma sorte de melancolia política que é nossa constante, com raros intervalos de euforia. Nós nos resignamos a muitos problemas, que achamos não terem como sair da vida pessoal e privada - e que são deprimentes. Mas eles podem ser enfrentados e até resolvidos, se soubermos transpô-los para a vida pública e política. É a esperança que o Brasil precisa construir: sair da passividade que nos isola a todos, para uma posição ativa que só existirá na cooperação de muitos. Esta proposta pode parecer ingênua e talvez o seja. Mas indica que podemos ter alegria numa política decente.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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