Gastança desenfreada dos Três Poderes revela falta de critério no uso do dinheiro público. Parte visível das despesas indica farra com transferências de pessoal, auxílio-moradia e acomodação de apadrinhados políticos em cargos estratégicos
Victor Martins, Bárbara Nascimento e Antonio Temóteo
Ao trocar as belezas naturais do Rio de Janeiro pelo cenário moderno de Brasília, um recém-comissionado do governo não imaginava que receberia tanto dinheiro. Na transferência para a capital federal, além da mudança bancada pelos cofres públicos, recebeu ajuda de custo equivalente a três meses do novo salário, uma para ele, outras duas para a mulher e o filho menor de idade. Embolsou, livres de impostos, R$ 54 mil. Dois meses depois, com a demissão do chefe que o convidou para o cargo, acabou dispensado. Sem alternativa e decepcionado, retornou para o Rio. Mas, para surpresa dele, não só teve os bilhetes aéreos e o transporte pagos novamente pelo governo, como ainda recebeu mais R$ 54 mil de ajuda de custo. Nesse curto período, engordou a conta bancária em R$ 108 mil por conta do Tesouro Nacional.
O dinheiro extra levou o ex-comissionado a se perguntar: “Realmente tenho direito a esses benefícios, ainda que a lei os preveja? A decisão de mudar de cidade foi minha. No máximo, as passagens aéreas e o gasto com o transporte dos móveis de casa são justificáveis. Mas receber R$ 108 mil em dois meses passou da conta”, ressalta ele, que não quer se identificar, temendo represálias. “No pouco tempo que permaneci em Brasília, ficou a impressão de que as pessoas do governo acreditam que o dinheiro do contribuinte é capim, nasce em qualquer lugar”, afirma.
A gastança com as benesses do alto escalão da Corte brasiliense espanta gestores públicos de países mais civilizados. Carros, voos executivos, almoços e jantares nos melhores restaurantes, internet e telefones ilimitados podem ser obtidos facilmente quando se entra nesse mundo. A depender do degrau alcançado na escada do poder, quase tudo é possível. Parte das mordomias atende também o funcionalismo dos segundo e terceiro escalões. N o ano passado, Executivo, Judiciário e Legislativo consumiram em toda sorte de benesses R$ 10,7 bilhões. Essa, porém, é a parte visível da farra com o dinheiro do contribuinte.
Muitas despesas da Presidência da República, de ministros, de parlamentares e de juízes não são abertas, sob a alegação de segurança nacional. Mas a falta de transparência estimula os abusos. “A democracia não tem preço, mas tem um custo elevado, que sempre pode ser reduzido com austeridade e bom senso”, observa Gil Castelo Branco, coordenador da organização não governamental Contas Abertas. “Há muito se prega o enxugamento da máquina pública, que se diminuam as despesas com a burocracia a fim de que sobrem recursos para áreas essenciais, como saúde, educação e segurança”, afirma. “O que vemos é exatamente o contrário. Uma máquina cada vez mais inchada, pesada e cheia de privilégios.”
Exageros
O inchaço começa pela nomeação de apadrinhados políticos — cabos eleitorais e candidatos derrotados em eleições —, que usufruem da maior parcela das benesses. Dependendo da graduação do DAS, como se denomina a função desse grupo, eles têm carro à disposição, que, mesmo contrariando a lei, leva os filhos para a escola, auxílio-moradia e, claro, a ajuda de custo de até três salários quando chegam e quando saem de Brasília. Em 2013, somente com salários, os DAS custaram quase R$ 1 bilhão ao contribuinte. Já as despesas com pessoal requisitado absorveram R$ 615,3 milhões.
A quantidade de ministérios no governo Dilma Rousseff, 39 no total, facilita a propagação das benesses. Com apenas 18, no entender de especialistas, o país seria perfeitamente governável. As alianças políticas, no entanto, obrigam a existência dessa profusão de ministros e cada um pode custar de R$ 1,5 milhão a R$ 2 milhões por ano. “Tal situação impacta muito mais pelo exemplo negativo do que pelo efeito no Orçamento. Infelizmente, com os ministros vão os apadrinhados, que abusam dos cargos de DAS”, analisa Marcos Troyjo, professor na Universidade Columbia, em Nova York.
Apesar de parte das benesses da Corte ser visível, a gastança só se torna gritante quando se descobre que a presidente Dilma torrou mais de meio milhão de reais com uma comitiva numa viagem à Itália ou quando fez uma parada técnica para jantar no restaurante mais caro de Portugal e se hospedou no hotel mais luxuoso de Lisboa — fatos que o Palácio do Planalto tentou manter sob sigilo. “A questão é quanto a sociedade pode suportar a demanda crescente por impostos para financiar gastos públicos sem critério. Será que se justificam tantas despesas num país em que há tanto por fazer pela população?”, questiona Paulo Rabello de Castro, presidente do Instituto Atlântico e integrante do Movimento Brasil Eficiente.
Não custa lembrar que a realeza britânica, que custa R$ 125 milhões por ano, 10 vezes menos que a Corte brasiliense, está sendo questionada por gastar demais. Ano passado, a rainha Elizabeth II estourou as contas em R$ 8,4 milhões e recebeu um puxão de orelha dos gestores que acompanham as despesas reais. Na Holanda, a realeza se locomove de bicicleta, transporte também usado pelo prefeito de Londres para trabalhar. No Brasil, pelo menos 5 mil carros estão à disposição dos Três Poderes, sem muito critério para uso.
Os privilégios da Corte brasiliense estão no chão e nos ares. Diante das regras frágeis, integrantes do Executivo, do Judiciário e do Legislativo usam os aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) até para fazerem implantes de cabelo. A bordo, são servidos bufês com canapés de camarão e caviar, pato assado e o que mais o viajante desejar. Apenas o contrato entre a Presidência da República e a empresa RA Catering custa mais de R$ 2 milhões por ano aos cofres públicos.
Pobre contribuinte
O uso do auxílio-moradia e de apartamentos funcionais também é desregrado. Alguns há anos são ocupados por ex-servidores que deixaram os cargos, mas se recusam a abandonar os imóveis. Funcionários relatam que o benefício tem permitido a muitos apadrinhados fazerem uma poupança robusta. Para recebê-lo basta apresentar um bilhete aéreo mostrando que vem de outra região. No caso de ministros, o auxílio pode chegar a R$ 6,6 mil, o equivalente a 25% do salário.
As benesses, uma confusão entre o público e o privado, contrastam com o espírito de servir ao público, que deveria predominar nos Três Poderes. Quando foi prefeito de Nova York, nos Estados Unidos, Michael Bloomberg deu exemplo. Recebeu apenas US$ 1 por ano de salário, como valor simbólico. Ele usava jatinhos, helicópteros e carros, mas tudo bancado com recursos próprios.
Paul Volcker, quando foi nomeado presidente do Federal Reserve, o banco central dos EUA, saiu do mercado financeiro e perdeu metade da renda. Alugou uma quitinete em Washington, próxima do trabalho. A mulher dele, que ficou em Nova York, teve de alugar um quarto da casa onde morava para fechar as contas. Ainda que sejam casos extremos, deveriam servir de alerta para aqueles que sorvem, sem remorsos, o dinheiro dos contribuintes.
Fonte: Correio Braziliense
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