• Como repensar a produção de modo não destrutivo
- Valor Econômico
Marina Silva, de todos os que disputam a presidência da República, é o único nome que seria ouvido mesmo fora de qualquer cargo ou mandato. Não chega a ser uma pensadora, mas tem uma proximidade do mundo do pensamento que é rara no mundo da política. De nossos políticos talvez seja quem melhor capte as novidades de nosso tempo. Transita com tranquilidade entre a política e o mundo da vida. Sua entrada na disputa faz esperar um salto de qualidade na discussão - tanto nas perguntas que só ela pode fazer, quanto nas que tem de responder.
Deixo para a próxima coluna os questionamentos a ela. Hoje, trato daquilo que pode ser sua maior contribuição ao debate, ganhe ou perca as eleições - lembrando a diferença que ela fez, em 2010, entre "perder perdendo" (caso de Serra) e "perder ganhando" (foi o seu caso).
Este faro para o ar do tempo, que os alemães chamam de "Zeitgeist", se evidenciou nas manifestações de 2013. Só ela entendeu, quase que por intuição, as formas de mobilização - e de vida - dos jovens. Por isso, não creio muito que seus valores religiosos a barrem ao mundo contemporâneo e a seus modos novos de amar. Ela insiste em separar sua fé das posições políticas que lhe cabe defender. Mas tem valores éticos fortes - assim, aliás, como Dilma Rousseff. Na entrevista de Dilma, note-se que o Jornal Nacional, sempre duro com a corrupção atribuída ao PT, poupou sua honra pessoal; e note-se a severidade com que ela manteve à distância, durante a Copa, o presidente da CBF. A diferença é que a ética de Dilma é laica, a de Marina, religiosa.
Dessa preocupação ética, vem a crítica que se faz a ambas - que não gostem daquela atividade política primordial que consiste em escutar, ceder, negociar. A ética lida com o certo e o errado, com o justo e o injusto: é difícil transigir com eles. Já a política trabalha com um "dégradé" de cores, em que é incerta a fronteira entre bem e mal; por isso, sujeitos estritamente éticos dão, com frequência, maus políticos. A política é uma lição ininterrupta sobre a condição, ou a natureza, humana - pior que isso, sobre nossa imperfeição ou mesmo maldade.
Talvez Marina seja mais apta à discussão, às ideias, aos ideais, do que à gestão. É uma possibilidade. Parece que os dois homens que concorriam, Aécio Neves e Eduardo Campos, tinham uma aptidão maior a dialogar e conversar, disposição esta que no caso das duas mulheres que ora concorrem é substituída por valores éticos que as fazem desconfiar das concessões - que para o político tradicional, para o político homem, fazem parte da paisagem, do ar que eles respiram, mas que não é o mesmo delas.
A morte trágica de Eduardo Campos tirou de cena uma questão que poderia ser crucial para nossa democracia. Afirmei que Marina foi quem melhor entendeu a forma que tomaram as manifestações de 2013. Mas Eduardo talvez fosse o melhor presidente para atender ao conteúdo delas: a melhora substancial nos serviços públicos, a saber, transporte, segurança, educação e saúde - o que tenho chamado de quarta agenda democrática, após a queda da ditadura, a redução da inflação e a maciça inclusão social dos últimos anos. Eduardo poderia dar, ao projeto técnico de boa gestão nos serviços públicos, a base política que se chama apoio popular. Seria o mais apto, parafraseando Heidegger, para mostrar que a essência de uma solução técnica está no suporte político. Ele foi-se, e com ele talvez essa agenda.
Mas Eduardo estava sendo só um coadjuvante no confronto de PT e PSDB. A candidatura de Marina traz à praça uma terceira posição. É isso o que muda o cenário.
Marina já tem nome na ecologia, mas nos últimos anos se deslocou para a economia. Na defesa do meio ambiente, sabe-se sua história. Na economia, ainda não. Ora, a ecologia coloca uma questão essencial - e nova - na discussão brasileira. Os candidatos Dilma e Aécio acreditam no PIB. Para eles, desenvolvimento econômico é uma prioridade. Marina muda o jogo, podendo ter como grande "case" o automóvel privado.
A cada dificuldade econômica maior, os governos federal e estaduais, petistas ou tucanos, baixam impostos para estimular a produção de carros. A indústria automobilística, desde sua criação, no governo Juscelino Kubitscheck, tem notável efeito multiplicador sobre a economia. Mas o transporte privado devasta as cidades. O trânsito se torna impossível.
Espaços públicos são destruídos, para dar passagem a automóveis. A antiga praça, como ponto de encontro das pessoas (o "footing" das cidades do interior), cede lugar a avenidas e ruas nas quais cada indivíduo vê o outro, não como interlocutor ou mesmo amigo, mas como um inimigo disputando espaço e velocidade. O carro é uma arma de guerra, e não só porque mata perto de 50 mil ao ano no Brasil. Os custos econômicos de uma sociedade norte-americanizada pelo transporte individual são elevados; já o prejuízo à qualidade de vida, nem dá para medir.
Neste ponto se espera uma posição firme de Marina. As questões que ela pode colocar são preciosas. Está na hora de dizer que uma sociedade se destrói, a continuar por esse caminho. Não é uma plataforma fácil ou popular, mas ninguém tem ascendência moral comparável à de Marina para defendê-la. Com isso não desqualifico seus adversários, apenas noto que há um discurso importante, estratégico, que ela é a única líder apta a propor. E o carro é apenas a porção emersa de um iceberg que envolve todo o sistema produtivo, sobretudo de bens mas também de serviços, chegando a ameaçar o laço e o tecido sociais.
Marina cumprirá a missão de emplacar, na agenda brasileira, esta questão?
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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