domingo, 12 de dezembro de 2021

Dorrit Harazim - País ou sumidouro?

O Globo

Tem coisas que simplesmente somem no Brasil. Por vezes, inúmeras vezes, são vidas. Ou podem ser dados, ou comida no prato, a verdade, a vergonha e a decência. Pode ser tudo isso e muito mais. Pode também ser o fugitivo costas quentes Allan dos Santos. Evaporado do país para não responder ao inquérito do Supremo Tribunal Federal sobre fake news, o blogueiro se mantém ativíssimo na trincheira virtual bolsonarista. Sumiu apenas fisicamente.

Convém, sobretudo, nunca esquecer os três meninos de Belford Roxo, no Rio, que foram tragados na rua por matadores logo após o Natal do ano passado. Lucas, de 9 anos, Alexandre, de 11, e Fernando, 12, nunca mais foram vistos. Nem sequer seus ossos, inicialmente confundidos com os de animais, foram encontrados. Segundo a investigação policial divulgada nesta semana, o castigo dos moleques havia sido decidido pelo tribunal do tráfico do Morro do Castelar: cabia-lhes uma sessão de tortura por terem surrupiado o passarinho de um morador da vizinhança. Uma das crianças não teria resistido. Morreu de surra. Diante desse incômodo imprevisto, os justiceiros executaram os outros dois moleques.

Este será o primeiro Natal sem as travessuras de Lucas, Alexandre e Fernando, sumidos na endêmica violência nacional. Será, também, o primeiro Natal de 139 milhões de brasileiros plenamente vacinados cujos registros de imunização contra a Covid-19 simplesmente desapareceram na madrugada de sexta-feira. Por obra de hackers que conseguiram invadir o site do Ministério da Saúde, os aplicativos ConecteSUS e o e-SUS Notifica, ambos absolutamente cruciais no momento atual, tornaram-se inacessíveis e inoperantes. O primeiro fornece o Certificado Nacional de Vacinação eletrônico, documento indispensável para quem precisa viajar a trabalho ou lazer fora do Brasil, além de já necessário também dentro das nossas fronteiras. O e-SUS Notifica é a ferramenta usada por estados e municípios para a elaboração diária do mapa nacional da Covid-19. Diante de tamanho apagão, navegava-se às cegas até o fechamento deste texto.

É em momentos assim que a confiabilidade de um governo emerge ou afunda mais ainda. Em seus três anos no poder, o presidente Jair Bolsonaro divulgou uma soma jamais vista de dados deliberadamente falsos — fosse perante a ONU ou em suas lives semanais. O locatário do Alvorada também conseguiu uma mala repleta de absurdos sem lastro factual. Seu método operacional de liderança resume-se a manipular a máquina do Estado a favor da manutenção do poder. Por tudo isso, foi inevitável que surgisse, quase simultaneamente ao ataque cibernético real, uma teoria conspiratória para o crime. O apagão teria sido ação de algum hacker “uberbolsonarista”, dado que sua consequência imediata foi o adiamento por uma semana da detestada entrada em vigor de regras sanitárias para viajantes? Apesar de as regras anunciadas serem mínimas quando comparadas às de outros países, elas atrapalham um pouco o posicionamento antivacina de Bolsonaro e seus seguidores.

A ojeriza palaciana à ideia de um passaporte vacinal obrigatório, que exigiria adequação ao negacionismo oficial do presidente, está no centro do imbróglio. Nada a ver com “liberdade ou morte”, como procurou tonitruar o pedestre ministro da Saúde, Marcelo Queiroga . “Por que vocês estão tão preocupados com esse assunto [o detalhamento das regras sanitárias?…. Vira a agenda, pessoal, vira a agenda…”, bufava um Queiroga de passo apressado, simulando produtividade na véspera do apagão de dados. A estudada impaciência do ministro com a imprensa pretendia arrostar poder — aquele poder que a própria pessoa sabe ser pequeno, e os demais sabem ser covarde.

No dia seguinte, de jaleco do SUS e ombros mais caídos, voltou a ser o titular da pasta falsamente modesto que consegue ser ainda mais desprezível que seu malfadado antecessor. Queiroga tornou-se uma desonra para a sua profissão de médico e avilta à luz do dia suas responsabilidades com a saúde pública. Sendo o Brasil o que é, a política haverá de abrigá-lo em algum escaninho. Para um grande escritor do século passado, Albert Camus, a grandeza de um ser humano está na sua decisão de ir além de sua condição. Outro escritor, Anatole France, ainda mais antigo que Camus, ensinou que só ao envelhecer nos damos conta de que o ato de pensar é a mais rara entre as coragens humanas. Juntando as duas coisas, talvez ainda tenhamos tempo de tirar o Brasil de sua atual condição de sumidouro — e de pensar. Pensar alto e grande.

 

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