quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Novas frentes para isolar o fascismo - Tarso Genro e Aloysio Ferreira

O Globo

Novo mundo não seria mais uma comunidade de vizinhanças contraditórias, mas uma totalidade do globalismo

Impressiona a naturalidade com que as sociedades das grandes economias do mundo recebem o que pode ser o fim das democracias gestadas nas revoluções Francesa e Americana. A postura fracassada do “apaziguamento” do Acordo de Munique, como filosofia diplomática na década de 1930, desarmou os espíritos para a resistência ao nazismo, tornando os povos dóceis ao pragmatismo e à traição. A docilidade leniente custou milhões de mortos no Holocausto, nos campos de batalha do mundo inteiro, nas cidades incendiadas da União Soviética e de toda a Europa.

Umberto Eco, em 1998, viu a emergência de um novo projeto fascista, presente nas fragmentações da pós-modernidade, que poderia transferir para os Estados dos países ricos o monopólio político das redes, para a construção de um novo mundo. Este não seria mais uma comunidade de vizinhanças contraditórias, mas uma totalidade — esta sim — do globalismo perfeito. Por meio dela, o modo de vida, a cultura e a política seriam uniformizados pela mentira, construções falsas da “verdade” perfeita e inquestionável.

A articulação do Estado americano com Mark Zuckerberg e Elon Musk — depois das ameaças diretas à soberania do CanadáGroenlândiaPanamá e México — é a formação de uma Internacional Protofascista que — na recusa da modernidade e no culto da “ação pela ação” — é acompanhada de uma concepção de mundo em que a vida não é uma luta por viver, mas pelo autoaniquilamento humano.

Esse novo Estado “globalista” visa a reorganizar o pacto imperial-colonial num outro nível: com a posse dos territórios por meio do controle político da opinião, com o uso apenas subsidiário da força militar externa. Um sistema apoiado no servilismo manipulado, que se torna voluntário, dos mais explorados, dos aniquilados pela miséria, dos infelizes e sociopatas, bem como de todos os que não foram integrados à vida comum da “normalidade” capitalista. Do ventre das crises do capitalismo nasce o fascismo, não o socialismo da reforma ou da revolução.

Estaremos num momento “decisivo” para o futuro da Humanidade? Desde a adolescência ouvimos essas sentenças. Por isso, nos acostumamos a recusá-las. Pode ser dito, todavia, que, se não for um momento decisivo, é o momento final de um ciclo, no qual o próprio termo “decisivo” perde o seu sentido. Um novo período, no qual a História fará de nós o que ainda não sabemos, mas que será bem pior do que o ciclo do moderno que ora se encerra. A rebeldia do espírito humano poderá vencer?

Dois exemplos a serem recordados para enfrentar essa ameaça. Primeira rebeldia: a de George Steiner, quando lembra o livro de Primo Levi, em que ele destaca o valor necessário “para desejar sobreviver a Auschwitz”, por meio da recordação da escuta do Canto de Ulisses, na “Divina Comédia” de Dante. Segunda: lembrando Aleksander Wat, pensando que poderia suportar o seu recolhimento pelo stalinismo à prisão de Lubianka, quando numa manhã, no princípio da primavera, ouviu à distância um fragmento da “Paixão segundo São Mateus”, de Bach. Duas rebeldias da consciência contra situações aparentemente sem saída.

No outro lado da História, o sentido do humano na modernidade não difere do que John Reed viu na Revolução Russa, para situar-se nos seus acontecimentos épicos:

— De um lado, um punhado de operários e soldados de armas na mão, representando a insurreição vitoriosa, serenos, mas com um aspecto miserável. Do outro lado, uma multidão furiosa, formada pela mesma espécie de indivíduos, que se aglomeravam ao meio-dia nas esquinas da Quinta Avenida, de Nova York, rindo, injuriando, vociferando: “Traidores! Provocadores!”.

O potencial da Revolução iniciava também os movimentos para devorar seus filhos.

As duas placas tectônicas dos últimos três séculos — Iluminismo e Revolução Russa — são agora substituídas por outros cataclismos. As ideias de luta contra os fascismos, bloqueadas pelos algoritmos da dominação, que geram enxames informais do irracionalismo edificado de fora da vida social, por emoções fugazes aceleradas pelo ódio. Vencer significa construir um povo universal, consciente dos perigos da transição climática, das desigualdades sociais e das guerras surdas ou estrondosas a que os países mais ricos submetem o gênero humano. Internamente, isso significa formar novas frentes políticas para isolar o fascismo e os apóstolos de qualquer ditadura civil ou militar.

*Tarso Genro e Aloysio Ferreira foram ministros da Justiça

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