domingo, 6 de outubro de 2024

Dorrit Harazim - A tempestade

O Globo

Um ano já. E Israel ainda não permitiu a entrada em Gaza de um só jornalista ou fotógrafo profissional independente

Se o destino sussurrar no seu ouvido que você não pode deter a tempestade, sussurre de volta “eu sou a tempestade”.

Muitos tentam, porém desistem, varridos pela implacável ventania da vida. (Jean Cocteau já dizia que “viver é uma queda horizontal”.) Alguns de nós até conseguem ficar de pé. Mas só um punhado bastante especial desafia o destino com a naturalidade de Bisan Owda. Ela é irresistível, e seu documentário de oito minutos “It’s Bisan from Gaza, and I’m still alive” também. Tanto assim que seu curta noticioso conquistou um dos prêmios do 76º Emmy de duas semanas atrás, além de reconhecimento unânime na premiação dos Peabody Awards e Edward R. Murrow Awards deste ano.

A jornalista palestina de 25 anos mora em Gaza, tem três filhos e, desde o início dos bombardeios israelenses ao enclave, em outubro passado, empunhou o celular e passou a fazer postagens do que vê, sente, pensa e vive — tudo em inglês, sem saber se suas mensagens jogadas na imensidão da blogosfera aportariam em alguma praia. Todas começavam com sua imagem sorridente, dizendo:

— Sou Bisan, de Gaza, e ainda estou viva.

O episódio premiado foi produzido pela Al Jazeera Plus, está acessível pelo link e retrata o início do estrangulamento de Gaza que se seguiu à matança do 7 de Outubro contra Israel. Passado um ano, Bisan continua a falar para o mundo — tem 4,8 milhões de seguidores no Instagram, e seus despachos mantêm o frescor e o horror dos primeiros dias.

— É uma vitória para a Humanidade — celebra a Al Jazeera Plus não sem razão. 

No mesmo espaço de tempo, mais de 130 colegas jornalistas de Bisan foram mortos pelo avanço israelense em Gaza. Todos palestinos.

Foi com indignação que a Creative Community for Peace — uma ONG pró-Israel de Los Angeles com forte influência sobre Hollywood — recebeu a atribuição do Emmy para Bisan Owda.

— Em vez de premiar um dos respeitáveis trabalhos apresentados sobre a guerra em Gaza, [os jurados] optaram por aplaudir uma ativista política filiada à Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) — acusou a entidade.

A nota também criticava “esse dia triste do jornalismo, de presságio sombrio para o futuro da indústria”. A resposta do braço documental do Emmy, que há quase 50 anos premia excelência no jornalismo televisivo, fincou pé.

— Damos visibilidade a vozes que alguns espectadores podem considerar condenáveis, ou mesmo odiosas — esclareceu o presidente da News & Documentary Emmy Awards.

Um ano já. E Israel ainda não permitiu a entrada em Gaza de um só jornalista ou fotógrafo profissional independente. Blecaute total, exceto para raras visitas de algumas horas em área designada e sob vigilância de escolta militar. Nem uma única equipe de televisão, rádio ou mídia eletrônica ocidental até hoje terá testemunhado o primeiro ano de desterro e aniquilamento de vida no enclave de 365 quilômetros quadrados. Situação particularmente inédita para esta era da comunicação instantânea e global. É um manto de sigilo e segredo insustentável no longo prazo. Quando Gaza, algum dia, vier a ser liberada para o grande jornalismo independente, tudo já terá sido dito por palestinos de celular na mão como Bisan Owda.

Segundo dados divulgados pela agência Anadolu, da Turquia, “902 famílias palestinas de Gaza tiveram seus registros civis obliterados por morte de todos os seus membros”. Tem mais: 1.364 famílias foram dizimadas restando um único membro. De 3.472 outras famílias sobraram apenas dois indivíduos. Foi para dar conta do orfanato a céu aberto em Gaza que organizações humanitárias criaram o acrônimo inglês WCNSF, para “criança ferida, sem familiares vivos”.

Em contrapartida, no Líbano agora também regado a bombas e atropelado por tanques israelenses em caça ao Hezbollah, a destruição é transmitida ao vivo e em cores, em todas as línguas, por jornalistas do mundo inteiro. Daí a correria maior em busca de um cessar-fogo imediato — se possível, antes de o Irã ser tragado na centrífuga de guerras que Israel pretende vencer simultaneamente. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu parece não ter pressa: faltam poucos dias para a eleição presidencial americana. Aumentar o círculo de fogo no Oriente Médio prejudica bastante a difícil campanha de Kamala Harris à Casa Branca. E um cessar-fogo de bandeja para um Donald Trump eventualmente vitorioso teria sabor de desforra adicional. Como deter essa tempestade?

 

4 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Meu Deus!

Anônimo disse...

Brilhante, Dorrit. Do latrocida ao genocida, a (eterna) condição de vítima parece justificar tudo.

Anônimo disse...

Texto perfeito, muito sensível. Os crimes de guerra de Israel são escondidos pelo governo do genocida Netanyahu. A censura à imprensa é total em Gaza, e os ocidentais ainda acreditam que Israel é a única democracia da região. Poucas vezes a "democracia" foi tão bárbara e sanguinária!

Anônimo disse...

Bem observado, concordo plenamente.