O Globo
De Palm Springs, destino na Califórnia que
trilhou no dia seguinte à consagração de Fernanda
Torres no Globo de Ouro, para cumprir nova rodada de exibição e
debate sobre “Ainda estou aqui”, Walter
Salles disse que o filme é também sobre a transmissão. A palavra
define precisamente o motivo do turbilhão de sentimentos aflorados a partir
daquele 6 de janeiro, Dia de Reis, madrugada de rainha. Quando o diretor
escreveu a mensagem, dona Fernanda
Montenegro, ainda inebriada pela conquista da filha, acabara de ler ao
vivo no “GloboNews Mais”
a carta que redigiu para eternizar a emoção. E proferiu a sentença definitiva:
— Eu estou muito carregada, porque a minha idade não é de começo de vida. E eu vivi para ver isso.
A vida presta, como costuma repetir sua
filha. A mãe chegou aos 95 anos ativa e lúcida para assistir à herdeira
receber, mais de duas décadas depois, um dos prêmios que lhe eram devidos. Dona
Fernanda, aos 69, fora indicada ao Globo de Ouro e ao Oscar de 1999 por Dora, a
“escrevedora de cartas” de “Central do Brasil”, outra obra espetacular de
Walter Salles. Um troféu perdeu para Cate
Blanchett, protagonista de “Elizabeth”, à época com 29 anos. O outro
ficou com Gwyneth Paltrow, então com 26 anos, pela Viola de “Shakespeare
apaixonado”, longa premiado como Melhor Filme, hoje pouquíssimo lembrado.
— Nanda ganhou o prêmio que dona Fernanda
deveria ter recebido em 1999. “Ainda estou aqui” é também um filme sobre a
transmissão, e é tão bonito ver como ocorre o mesmo com dona Fernanda e Nanda —
me escreveu o cineasta.
“Ainda estou aqui” é obra de legado. Com o
livro que deu origem ao longa, Marcelo Rubens Paiva documenta, preserva e honra
a trajetória da mãe. Eunice Paiva, pela brutalidade que sofreu (sequestro,
morte e ocultação do corpo do marido, o ex-deputado Rubens Paiva), tornou-se um
dos ícones da luta por verdade, justiça e reparação às vítimas da ditadura
militar no Brasil. Não bastasse, formada em Direito, foi aliada indispensável à
luta por direitos dos povos originários inscritos na Constituição de 1988 (artigos
231 e 232). Foi o que disse o filósofo, escritor, líder indígena e imortal da
ABL Ailton
Krenak, em entrevista à rádio CBN:
— É impossível contar a história do movimento
indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva. Quando você vê alguém falando
que o Ministério Público denunciou, entrou com ação, fez não sei o quê, a
Eunice Paiva já fazia isso antes de o Ministério Público existir. Está bom?
A contribuição de Eunice Paiva à democracia e
aos direitos humanos é inequívoca. O livro de Marcelo e o filme de Walter —com
atuações marcantes de Fernanda Torres, Selton
Mello e de Fernanda Montenegro, em participação tão breve quanto
avassaladora — fizeram o Brasil e o mundo saberem disso. E num momento
urgentemente necessário da História, quando o autoritarismo se ergue
naturalizado em porções do planeta que pareciam indissociáveis de valores
democráticos. Como tem dito Fernanda desde a premiação, Eunice Paiva, sua
personagem da vida real, nos “ensina a resistir à adversidade”. Afinal, foram
duas décadas e meia para tão somente conseguir a certidão de óbito do marido,
em 1996. Os restos mortais até hoje não foram localizados.
E como é necessária a lembrança de uma
história de luta incessante por direitos — e de tantas outras histórias
protagonizadas por indivíduos e movimentos — quando há gente empenhada em mudar
o vento e impor retrocessos. Saber de Eunice Paiva e de Ailton Krenak, de
Abdias Nascimento e Sueli Carneiro, de Chico Mendes e Lélia Gonzalez é
combustível para tempos duros que se avizinham, com líder global propondo
solapar a soberania de países constituídos e magnatas da tecnologia autorizando
homofobia, intolerância religiosa, extremismo político, crimes de ódio.
Na noite em que premiou a brasileira como
atriz de drama, o Globo de Ouro também reconheceu Demi Moore pelo papel em
comédia. A americana, de 62 anos, desabafou sobre a carreira inteira atrelada a
beleza física e interpretações irrelevantes. Queixou-se por nunca ter se
sentido bela, magra, talentosa suficientemente. Deu voz a dores de muitas
mulheres maduras e vivas e atuantes, mundo afora. A própria Fernanda assinalou
a surpresa em ser premiada aos 59 anos e falando português.
A celebração reconheceu o trabalho de
mulheres experientes, diferentemente de 26 anos atrás. Quando Fernanda
Montenegro disputou o Globo de Ouro, três das cinco indicadas tinham mais de 40
anos: a brasileira, com 69; Susan Sarandon, 52; Meryl Streep, 49. Cate
Blanchett tinha 29 e Emily Watson 32. No último domingo, nenhuma das
concorrentes na categoria de Fernanda tinha menos de 40. Angelina Jolie e Kate
Winslet estão com 49 anos; Nicole
Kidman e Pamela Anderson, com 57; Tilda Swinton, 64. Estamos aí.
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