O Estado de S. Paulo
Como sugeriu o embaixador George Kennan, a mente misteriosa de certos governantes pode abrigar riscos incalculáveis para todo o planeta
Em qualquer parte do mundo, está certíssimo o
cidadão que nutre sérias dúvidas sobre a qualidade de seus líderes e se sente
inseguro sobre as loucuras que cedo ou tarde eles poderão aprontar.
Os nomes de alguns dos atuais governantes – Donald Trump, Nicolás Maduro, Daniel Ortega, Viktor Orbán, Vladimir Putin – cintilam entre os que mais causam preocupações. Com um elenco como esse, realmente, não há enredo ou cenário que preste. No Brasil, com Lula praticamente fora do baralho e Jair Bolsonaro já denunciado pela Procuradoria-Geral da República por envolvimento na tentativa de golpe, o horizonte clareia um pouco, a não ser, naturalmente, na área econômica.
No plano internacional, Donald Trump é a
grande estrela. Destaca-se como o mais perigoso não só por presidir uma
superpotência, mas também por beirar o incompreensível. Encaixa-se
perfeitamente na expressão que tomei emprestada do norte-americano George Kennan,
que a aplicou em 1946 à União Soviética, onde servia como embaixador. Mas é por
bondade que me refiro a Trump como um mistério, pois há cabimento em cogitar
que possa ser um desmiolado – ou mesmo desvairado ou louco. Dá-se, entretanto,
que a loucura de Trump tem método. Ele atira para todos os lados, mas tem um
objetivo. Voltarei a este ponto, mas antes devo me referir a uma doidice que
não é dele, e sim da estrutura institucional dos Estados Unidos.
Tendo os órgãos parlamentares e judiciais
incumbidos de investigar o caso comprovado que ele de fato orquestrou a
tentativa de golpe de Estado de 6 de janeiro de 2021, não se compreende haverem
a ele concedido a “imunidade presidencial”, com o que o julgamento só veio a
ser realizado após ele ser eleito e empossado na mais alta magistratura. Isso,
os americanos me perdoem, mas me parece coisa de doido. O caso, obviamente, era
para impeachment e julgamento criminal.
Os atos e as declarações de Trump até esta
data justificam com sobras as dúvidas que têm sido suscitadas (e eu compartilho
delas) em relação à sua sanidade mental. Logo de saída, ele falou em comprar ou
anexar (aqui o verbo não importa) o Canadá e a Groenlândia, a segunda
pertencendo, como ninguém ignora, à Dinamarca; em comprar a Faixa de Gaza e de
lá tirar os palestinos, para que investidores americanos a transformem numa
área de entretenimento; em impor ou ameaçar impor tarifas extremamente elevadas
a diversos países, a começar pela China; e na deportação em massa de imigrantes
considerados ilegais e demissão sem indenização de milhares de servidores
públicos. Escusado observar que essa lista, embora não o coloque na companhia
de Hitler e Stalin, sugere claramente que sua praia é mais esta do que a da
“democracia exemplar” que os Estados Unidos sempre foram.
Eis aí, em poucas linhas, o método subjacente
às ações do sr. Trump. Salta aos olhos que ele mantém uma arma de fogo
permanentemente apontada contra seu próprio pé, ou, dizendo-o com a devida
formalidade, que seu objetivo é atingir a estatura moral que quase todo o mundo
sempre reconheceu nos Estados Unidos. Isso significa pôr em risco o soft power
norte-americano, um ativo político e diplomático de altíssimo valor.
A questão geral, como sugeriu o já citado
George Kennan, é que a mente misteriosa de certos governantes pode abrigar
riscos incalculáveis para todo o planeta. Falecido em 2005, aos 101 anos,
Kennan foi de longe o mais influente diplomata dos Estados Unidos desde a 2.ª
Guerra Mundial. Servindo como embaixador na União Soviética, ele de lá remeteu
ao Departamento de Estado em 1946 um Longo Telegrama, cujo teor foi publicado
no ano seguinte num artigo assinado apenas como “Mr. X” e com o título As
Fontes da Conduta Soviética. Nesses dois documentos, ele descreveu a União
Soviética como uma máquina essencialmente “expansionista”, que jamais se
deixaria limitar por negociações diplomáticas. Recomendou, então, que os
Estados Unidos adotassem uma estratégia de containment (contenção), recorrendo
a todos os meios possíveis e confrontando o poder soviético em qualquer parte
do mundo. Assim nasceu, de imediato, a guerra fria, a presença americana na
política interna de numerosos países, e até mesmo o Plano Marshall, que
soergueu a Europa dos escombros da 2.ª Guerra.
Após sua morte, seus papéis foram
minuciosamente estudados e condensados em importantes biografias, recentemente
resenhadas pela Claremont Review of Books. O homem que surge desses relatos é
praticamente o oposto da grande lenda diplomática. Declara que o único país
onde se sentia à vontade era a União Soviética. Abominava o “individualismo” e
o “consumismo” do povo americano e rejeitava enfaticamente a concessão do
direito de voto às mulheres, aos imigrantes e aos pretos.
O que aí temos, então, é o caso talvez único
de um homem que no poder seria provavelmente tão desastroso como Trump, mas que
teve ao menos a sabedoria de não mesclar seus sentimentos individuais com os
deveres que a função de embaixador lhe impunha como representante de seu país.
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