É rica e variada a ensaística brasileira que trata da herança portuguesa ligada ao Patrimonialismo. Nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Simon Schwartz, Oliveira Viana, Nestor Duarte constituem uma galeria de estudiosos das instituições políticas brasileiras, com uma profunda ênfase no uso privado, familista dos bens públicos e sua distribuição aos parentes, contraparentes, cupinchas, apaniguados e que tais. Essa tradição analítica foi consideravelmente ampliada com os últimos ensaios de Francisco de Oliveira e o último livro de Faoro sobre o liberalismo no Brasil. Oliveira fala de uma burguesia de Estado, que só acumula capital através de uma relação simbiótica com o Estado e suas políticas de “socialização das perdas”. Burguesia cartorial, da corrupção e da sonegação fiscal; dos grandes e pequenos negócios com os agentes públicos. Empresas que criam fundações humanitárias para esconder a face podre dos desvio do dinheiro público através da participação em grandes obras públicas.
Naturalmente que isso só pode ser feito com a cumplicidade dos gestores públicos. Eles são sócios no crime. São beneficiários, de um ou de outro modo. A criminalização dos ilícitos contra o erário público, seus atores, beneficiários e agentes do Poder Público, imputando-lhes a responsabilidade civil e criminal, punindo-os exemplarmente e exigindo a devolução ou o pagamento dos recursos desviados, não deve – entretanto- servir de instrumento de uma vindita ou catarse popular, sobretudo quando identificada com a figura do “vingador público”, seja um caçador de marajás ou um simples juiz. Mais problemático ainda é o uso ilegal, descontrolado ou partidarizado do chamado “Poder de Polícia” do Estado Democrático de Direito. Não se pode aceitar a existência de um estado policial e militar dentro do Estado Constitucional, regido pelo ordenamento jurídico da Nação. Isso ocorre quando os Poderes da República não funcionam, não cumprem com suas obrigações. Se o Legislativo legislasse, e o Executivo executasse e o Judiciário garantisse o cumprimento das leis brasileiras, o aparelho militar e policial não teria tanto autonomia. O ativismo policial corresponde à inação dos outros poderes.
E a sociedade civil brasileira? 0 que dizer de seus espasmos participativos? – Aqui entre nós não há propriamente o que se chama de “espaço público” no Brasil, entendido este como o lugar da formação racional da vontade política da sociedade. O que temos entre nós é um “espaço comum” produzido por uma sofisticada engenharia simbólica, destinada a nos fazer crer que pertencemos uma imaginária comunidade nacional, a um mesmo movimento ou causa comum. Pior ainda, por empresas jornalísticas (que são concessão do Poder público) que cuidam especialmente de seus interesses corporativos, sob o manto da inocência e da imparcialidade.
Agora junte os pedaços do quebra-cabeça: herança patrimonialista, burguesia de estado, inação ou inoperância dos Poderes constituídos, instabilidade política social, e autonomia do aparelho policial. Aí vem o messianismo político (a ideia de que “Deus é brasileiro”) e que vai enviar um anjo vingador, com suas espada na mão, para nos redimir da ação dos carcomidos, dos corruptos, dos marajás etc. Claro que cada um espera que o messias saia de sua igreja, de seu partido, de seu movimento. Mas do caos, das desorganização institucional, da falta de esperança e confiança nas instituições públicas, pode brotar não o eleito que nos salvará do precipio na undécima hora, mas a besta-fera do apocalipse, e aí não vai ter para ninguém.
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Michael Zaidan Filho é sociólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
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