- O Globo
O que está em jogo nos vários julgamentos que se seguirão ao de hoje no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que têm como pano de fundo a possibilidade de início do cumprimento da pena de prisão após condenação em segunda instância, é a lógica interna do nosso sistema judicial, que está sendo confrontada pela defesa do ex-presidente Lula. O STF mudar o entendimento sobre essa matéria, forçado pela situação política atual, é declarar que nosso sistema de Justiça não resiste a pressões externas.
A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, resiste em colocar o tema em pauta, pois não vê razão para revisitar o assunto apenas um ano depois da última decisão. O habeas corpus que está no Supremo ficará superado hoje, depois do julgamento do STJ. A defesa do ex-presidente terá que enviar novo pedido, ao mesmo tempo em que os prazos do TRF-4 correm para a decretação da prisão do ex-presidente Lula.
Pela votação de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a jurisprudência que vigorava até 2009, quando os recursos especiais ao STJ e os recursos extraordinários ao STF não tinham efeito suspensivo. Ao julgar o habeas corpus 84.078 em 2009, seguindo o voto do então ministro Eros Grau, a maioria decidiu, porém, que a Constituição não autorizava a execução da pena antes do trânsito em julgado do processo, pois violaria o princípio da não culpabilidade. Com a mudança na composição e a revisão de voto do ministro Gilmar Mendes, em 2016, a maioria no plenário votou pela retomada da jurisprudência anterior a 2009. Agora, quer-se mudar novamente o entendimento, talvez criando uma estação intermediária no STJ para o início do cumprimento da pena.
A posição mais coerente, além da daqueles ministros que mantiveram seus votos durante todo esse período, de um lado e de outro, é a da ministra Rosa Weber, que não integrava o STF em 2009. Ela chamou a atenção de que a jurisprudência da Corte mudaria em razão da alteração na sua composição, e votou pela manutenção da jurisprudência recente do Supremo, a favor do trânsito em julgado. Mesmo derrotada, ela tem votado sistematicamente pela prisão em segunda instância, seguindo a maioria formada contra sua posição.
Já o ministro aposentado Eros Grau, que liderou a mudança a favor do trânsito em julgado em 2009, recentemente deu uma declaração que tem seu peso político justamente por ser ele o autor: disse que, do jeito que as coisas estão se revelando, hoje ele seria a favor da prisão depois da condenação já em primeira instância, como acontece nos Estados Unidos, por exemplo.
Mesmo não interferindo diretamente na votação do plenário, a opinião de Eros Grau mostra como a questão é controversa e, mais que isso, como é perigoso o STF mudar de posição ao sabor dos acontecimentos políticos. O julgamento de hoje do STJ deve confirmar a decisão liminar de recusar o habeas corpus preventivo ao ex-presidente Lula, pois o STJ tem seguido a orientação do Supremo desde que a maioria a favor da prisão em segunda instância foi formada.
O ministro aposentado do STF Sepúlveda Pertence, advogado de Lula, defenderá a tese de que a prisão em segunda instância foi autorizada, mas não é obrigatória, o que é verdade. A votação ocorreu na análise de um “Agravo em Recurso Extraordinário” (ARE), que tem “repercussão geral”, mas não “efeito vinculante”, que tornaria a decisão obrigatória. Mas como orientação a todas as instâncias da Justiça, a prisão em segunda instância hoje é a regra, e conceder o habeas corpus contra ela é que se tornou a exceção, tanto que a vasta maioria dos habeas corpus tem sido negada.
A negação da prisão em segunda instância espelha bem a posição escolhida pela defesa do ex-presidente Lula de confrontar as decisões estabelecidas pelo sistema de Justiça. Nos embargos de declaração, por exemplo, em vez de esclarecer pontos específicos (apenas em dois casos fez isso, e o Ministério Público acatou), a defesa apontou 38 omissões, 16 contradições e cinco obscuridades que, segundo o Ministério Público, já foram analisadas profundamente no acórdão, o que retrataria mais o inconformismo com a decisão dos desembargadores do TRF-4, que não pode ser mudada por meio dos embargos declaratórios.
O procurador Maurício Gerun ressaltou que o acórdão dos desembargadores é claro ao analisar a posição política que Lula ocupava, e as provas foram consideradas em conjunto e ganharam credibilidade pela harmonia entre elas. O procurador disse ainda que o projeto de poder passou ao largo da normalidade democrática, com “obtenção de um Parlamento servil a partir dos valores milionários distribuídos”, o que justificou o agravamento da pena.
O próprio Lula vocalizou essa posição de confronto ao afirmar em entrevista a Mônica Bergamo, da “Folha de S. Paulo”: “Eu acredito na democracia, eu acredito na Justiça. E acredito que essas pessoas, o juiz Sergio Moro e os desembargadores, mereciam ser exoneradas a bem do serviço público”. Tais declarações expressam claramente uma tentativa de perturbar a instrução processual, e podem ser motivo para a decretação da prisão preventiva do ex-presidente pelo TRF-4.
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