O Estado de S. Paulo
Deve-se evitar a todo custo o desvio do
espaço fiscal aberto com a PEC 23 para despesas sem relação direta com a
seguridade social
O Senado Federal vem-se opondo a uma
aprovação, a toque de caixa, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23.
Apresentada pelo governo, essa PEC visa a romper a regra constitucional do teto
de gastos públicos e postergar o pagamento de dívidas do governo – os chamados
precatórios – já reconhecidas em definitivo pelo Supremo, após longuíssima
tramitação.
Essas duas medidas, que permitiriam
aumentar em R$ 106 bilhões os gastos no ano que vem, contêm um alto potencial
de pedaladas fiscais. Diferentemente do que argumenta o governo federal,
parcela relevante desses gastos, supostamente emergenciais, não será
obrigatoriamente destinada a cumprir o modesto programa de mitigação da miséria
chamado Auxílio Brasil.
Fique claro que a proposta do Executivo não é apenas um remendo, pois, na prática, ela promove o fim do teto de gastos. Criada como resposta à crise econômica e fiscal do final do governo Dilma, a adoção da Emenda Constitucional do Teto de Gastos pressupunha a necessidade de manter o crescimento da despesa pública em patamar inferior às expectativas desordenadas de expansão orçamentária do País. Se para alguns continha muitos defeitos, produziria, entretanto, resultados positivos no curto prazo, graças à expectativa de que os gastos estariam sob controle nos anos vindouros.
O teto de gastos estabelece um limite para
o crescimento das despesas públicas da seguinte forma: o volume de pagamentos
realizados pela União em 2016 tem sido corrigido todos os anos pela inflação
apurada de julho a junho. Em agosto, o governo encaminha para o Congresso a
proposta de orçamento do ano seguinte, com base num total de gastos
predefinido, limitado pela regra do teto. Isso permite ao Congresso discutir e
decidir como deve ser a alocação dos recursos públicos, definindo as
prioridades em diálogo com o Poder Executivo.
A proposta do governo muda o parâmetro que
atualiza o teto de gastos anualmente. Em vez da inflação apurada de julho a
junho, passaria a ser a de janeiro a dezembro, que é medida apenas em janeiro
do ano seguinte. Note-se que o limite de gastos seria, com isso, determinado
com base em estimativas de inflação, com as respectivas margens de erro.
Dessa forma, grupos de interesses seriam
incentivados a estimar taxas de inflação mais descoladas da realidade,
comprometendo, ainda mais, a qualidade do processo de discussão e aprovação do
Orçamento. Em última análise, o Orçamento seria aprovado em dezembro, sem a
definição dos limites de gastos do teto. Diríamos que o governo pretende, com
isso, constitucionalizar o princípio do orçamento-ficção no País.
A PEC 23 também cria obstáculos para o
pagamento de precatórios, que são dívidas líquidas e certas, decorrentes de
sentenças judiciais em última instância. Na prática, trata-se de uma nova
modalidade de pedalada fiscal: abre espaço no teto de gastos, postergando
despesas obrigatórias que, mais cedo ou mais tarde, tornam-se dívidas
acumuladas em bola de neve. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do
Senado, esse passivo pode alcançar R$ 850 bilhões já em 2026.
Os senadores José Aníbal (PSDB/SP),
Oriovisto Guimarães (Podemos/PR) e Alessandro Vieira (Cidadania/SE) apresentaram
uma proposta alternativa, sem pedaladas fiscais em seu DNA e sem comprometer o
teto de gastos. As emendas propostas abririam um espaço fiscal de R$ 89 bilhões
no Orçamento do ano que vem, ao permitir o pagamento de todos os precatórios
fora do teto. Sobrariam R$ 25 bilhões para corrigir gastos sociais mal
planejados no Orçamento, restando ainda R$ 64 bilhões destinados a reforçar o
programa Bolsa Família, que já contempla R$ 35 bilhões no ano que vem. Ou seja,
as emendas destinariam uma verba total de R$ 99 bilhões para assistência
social, podendo beneficiar 21 milhões de brasileiros, considerando um auxílio
de R$ 400 por mês.
Essas emendas incluem dispositivos que
tornariam a gestão de precatórios mais eficiente, evitando inseguranças
jurídicas e imprevisibilidades. O governo contaria com instrumentos de
negociação baseados em acertos de contas, sem impor calote e perdas para os
credores. Tudo isso sem alterar o método de correção do teto de gastos,
preservando a qualidade do planejamento fiscal do Orçamento.
No processo de votação da PEC 23 no Senado,
ainda que não tenham sido aprovadas todas as emendas, a redação enviada pela
Câmara dos Deputados foi aprimorada em aspectos fundamentais: o limite de
pagamento de precatórios passa a vigorar somente até 2026 e qualquer espaço
fiscal adicional gerado pelas mudanças fica vinculado exclusivamente a gastos
sociais.
O Senado Federal está diante de um enorme
desafio: não permitir que o governo ponha em risco a sustentabilidade fiscal do
Auxílio Brasil. Deve ser evitado a todo custo o desvio do espaço fiscal aberto
com a PEC 23 para despesas que não tenham relação direta com a seguridade
social. Ao fim e ao cabo, a prioridade deve ser a viabilização fiscal de uma
agenda mais robusta na área da assistência social, na linha de ação aprovada
pelo Senado.
*Senador (PSDB-SP)
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