quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Malu Gaspar - A eleição do cinismo

O Globo

Todo mundo que vive da política sabe que, sem cinismo, não se sobrevive na atividade. O cinismo permite fazer do inimigo de ontem o aliado de amanhã. Permite mudanças de rumo antes injustificáveis. Permite governar. Mas, acima de tudo, permite disputar eleições. Os mesmos marqueteiros que convencionaram que o pleito de 2018 foi da indignação com o sistema e da escolha de um outsider agora vêm afirmando que, em 2022, a tônica serão a inflação e a fome. Até agora, porém, está claro é que em 2022 teremos a eleição do cinismo.

No Congresso, todo o esforço tem sido para conseguir recursos abundantes e livres de fiscalização ou de limites de qualquer natureza para o ano eleitoral — dos R$ 16 bilhões do orçamento secreto aos R$ 65 bilhões com a mudança nas regras do teto de gastos, passando pelos R$ 3,28 bilhões das emendas Pix, que pingam diretamente nas bases sem escala ou fiscalização. Mas é tudo para o bem, claro. Afinal, o Auxílio Brasil precisa de recursos, a Saúde e a Educação também. Remanejar despesas? Impossível. Falta de transparência? Intriga da extrema imprensa! Todos sabem quem está enviando dinheiro para onde, basta procurar nas redes sociais.

Em paralelo, os parlamentares trabalham firme para flexibilizar a Lei de Improbidade Administrativa, sepultar a ideia da prisão em segunda instância e anistiar os partidos que incluíram em suas chapas candidatas laranjas para receber a cota do fundo eleitoral para mulheres.

O Judiciário vem sendo tomado por uma onda de decretações de nulidade de processos variados, daquele que provou um esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro (PL-RJ) aos que condenaram por corrupção Eduardo Cunha (MDB-RJ) e Sérgio Cabral (sem partido). De repente, magistrados se deram conta de que as punições a crimes como desvios de recursos, cobrança de propina ou enriquecimento ilícito foram todas aplicadas nas instâncias erradas, pelos juízes errados — mesmo tendo tramitado por anos sem que ninguém tivesse se dado conta de nada.

Felizes com a virada nos ventos, os mesmos que comemoram a prescrição dos processos de Lula e a possível aliança com Geraldo Alckmin (de saída do PSDB) se referem a Aécio Neves (PSDB-MG) e José Serra (PSDB-SP) como alvos de denúncia grave de corrupção, convenientemente esquecendo que são todos alvos da mesma investigação. E por que haveriam de lembrar, se até o juiz que comandou a Lava-Jato agora se propõe a disputar a Presidência da República procurando aliados justamente em partidos que abrigam investigados tanto pela sua própria operação como por outras?

Nos bastidores das negociações entre os partidos, hoje, tudo é possível. Alckmin e Lula são só a face mais visível das conversas que comportam composições de todo tipo — do PT com o PSD de Gilberto Kassab e, se necessário, até com o União Brasil (fusão de DEM e PSL). Bolsonaro entrou para o PL de Valdemar Costa Neto, que já cumpriu seu próprio tempo como usuário de tornozeleira eletrônica ao ser condenado por corrupção e lavagem de dinheiro no processo do mensalão. Enquanto isso, mantém no governo o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, a quem não cansa de elogiar e bajular.

De Bolsonaro a Moro, de Ciro a Lula, o grande consenso nacional é que não deve haver limites para ganhar a eleição. A campanha será sangrenta, o funil estreito, e quem não agregar o maior arco possível de aliados arrisca perder uma vantagem preciosa.

Claro que não será a primeira eleição em que isso acontece. E as pessoas podem muito bem mudar de opinião, rever convicções, perdoar antigos adversários. Em 2018, a própria Dilma Rousseff disse que o PT faria aliança “até com o diabo” para combater Bolsonaro. Mas, mesmo para isso, ela achava preciso “ter uma espinha dorsal”, “ter um coração”.

Em 2022, esse conceito parece estar vencido. Vale fingir que o dinheiro do toma lá dá cá com emendas parlamentares é limpo. Que os limites para os gastos públicos não estão sendo arrombados. Que não fomos alvo dos golpes baixos dos adversários. Que só os nossos inimigos contam fake news. E que continuamos lutando contra a corrupção enquanto nos aliamos a quem, noutro momento histórico, estaríamos trabalhando para prender.

É como se o meticuloso trabalho de destruição institucional levado a cabo por Jair Bolsonaro tivesse dizimado também os limites do que sempre consideramos aceitável. Talvez não haja mesmo outra forma de devolver a política a um nível minimamente razoável ou de sacá-la do domínio do terraplanismo. Mas é triste constatar que, entre as coisas mais importantes que o bolsonarismo nos tirou, estão o respeito a certos limites — e a falta de vergonha de ser cínico.

 

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