domingo, 26 de novembro de 2023

Lourival Sant’Anna - A nova política externa Argentina

O Estado de S. Paulo

Diana Mondino, que deve ser chanceler de Milei, disse que país manterá relações com foco no comércio

A eleição de Javier Milei deve interromper a projeção da China na Argentina e as tentativas da Rússia de seguir o mesmo caminho. O novo governo abre espaço para maior influência dos EUA e talvez do Brasil, se os interesses nacionais falarem mais alto do que a ideologia. Será ainda um aliado de Ucrânia e Israel.

No governo de Cristina Kirchner, a China começou, em 2014, a construção de uma base interplanetária em Neuquén, na Patagônia. Ocupando uma área de 200 hectares, ela inclui uma antena de 35 metros que monitora as atividades dos satélites. É uma típica instalação de uso dual – civil e militar. Na hipótese de guerra com os EUA, a China treina para derrubar satélites e cortar as comunicações e sistema de geolocalização do inimigo.

No atual governo de Alberto Fernández, os chineses assinaram a construção de usina de fertilizantes acompanhada de terminal portuário em Río Grande, Terra do Fogo, num projeto de US$ 1,25 bilhão. O porto controlaria a passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico pelo Estreito de Magalhães, daria acesso direto à Antártida, cobiçada pelas potências, e monitoraria as Malvinas.

Outro acordo prevê a construção de duas hidrelétricas, uma delas chamada Néstor Kirchner, ex-presidente e marido falecido de Cristina. Situadas na província nativa do casal, Santa Cruz, também no sul do país, elas são orçadas em US$ 4,7 bilhões. Há ainda um projeto na Província de Jujuy de exploração de lítio, mineral estratégico usado em baterias de veículos elétricos.

A Argentina entrou no ano passado na Nova Rota da Seda, programa trilionário de investimentos da China. Não são investimentos diretos, como fazem outros países: o modelo gera dívidas cuja garantia são as próprias obras. Os juros são mais altos que os de mercado. Em contrapartida, as exigências de compliance são mais frouxas, gerando oportunidades de corrupção. Dos US$ 277 bilhões de dívida externa argentina, US$ 20 bilhões são para a China.

AFASTAMENTO. Durante a campanha, Milei disse que não queria relações com o regime “comunista” da China, com a ressalva de que as trocas comerciais e investimentos são atribuição de empresas, não de governos. Xi Jinping enviou a Milei uma carta calorosa em que atribui “alta importância ao vínculo bilateral”. Milei agradeceu em um post no X (antigo Twitter). Ele reproduziu a carta e mandou os “mais sinceros desejos de bem-estar para o povo da China”.

A fórmula foi parecida com a usada em relação a Lula, que Milei também chamou de “comunista” e do qual prometeu afastar-se. À pergunta sobre se Lula seria bem-vindo na posse, ele garantiu que sim e ressaltou a importância do Brasil. Ou seja, esquivou-se de falar dos presidentes que havia atacado.

Lula hesita em ir, para evitar ser ofuscado. O ex-presidente Jair Bolsonaro será recebido festivamente, dada a identificação de Milei com ele.

Assim como a China, a Rússia também tenta ampliar sua presença na Argentina. Em 2010, Cristina selou com Vladimir Putin uma “aliança estratégica”. A Novatek, maior produtora de gás liquefeito da Rússia, ofereceu tecnologia para montar uma usina de liquefação no campo de Vaca Muerta, mas a ideia não prosperou.

O banco da Gazprom, maior produtora de gás do mundo e maior empresa da Rússia, propôs-se a financiar US$ 180 milhões para a construção de um porto na Província de Buenos Aires. O projeto foi barrado pela lei de zoneamento do município de Ramallo.

A Argentina aplicou em sua população a vacina russa Sputnik contra a covid, sem aprovação da Organização Mundial de Saúde e rejeitada pela maioria dos países. Em sua visita a Moscou, três semanas antes da invasão da Ucrânia, Fernández expressou o desejo de a Argentina se tornar “porta de entrada” da América Latina para a Rússia. Milei disse que não queria relações com Putin tampouco. Mesmo assim, o Kremlin manifestou desejo de manter “sólidos vínculos” com a Argentina.

CÚPULA. Volodmir Zelenski foi o primeiro governante europeu a telefonar para parabenizar Milei pela vitória. O presidente ucraniano lhe agradeceu por ter uma “ideia clara” sobre a guerra e por não ser “ambíguo sobre o bem e o mal”. Combinaram uma cúpula UcrâniaAmérica Latina em Buenos Aires, sob liderança argentina.

Depois, foi a vez de Joe Biden, que falou da “importância de fortalecer a relação bilateral” entre EUA e Argentina. Presidentes americanos não costumam ir a posses, e Biden enviará um representante. Já Donald Trump, como Bolsonaro um modelo para Milei, irá a Buenos Aires.

A economista Diana Mondino, que deve assumir a chancelaria, garantiu que sob Milei a Argentina manterá amplas relações internacionais, tendo o comércio como foco. Nada mau para um presidente que se mostrava disposto a se relacionar apenas com EUA e Israel, para onde aliás ele deve ir antes da posse. Será uma visita “espiritual”, segundo ele: Milei está se convertendo ao judaísmo e promete transferir a embaixada para Jerusalém.

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