quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - Queremos que a política sirva a quem?

O Estado de S. Paulo

Estamos dispostos a que a prioridade absoluta do poder público sejam as pessoas mais vulneráveis?

Gostamos de pensar que o interesse público é desatendido em razão da perversidade ou da estreiteza de visão dos políticos. Eles seriam a causa dos nossos problemas. Mas isso não condiz com os fatos. Os políticos são reativos ao comportamento da sociedade.

As promessas de campanha eleitoral falam muito sobre cada candidato, sobre sua visão de mundo e de Estado. Mas elas falam também sobre nós. São termômetro das nossas aspirações. O que realmente gostaríamos que mudasse em nossa cidade? Onde gostaríamos que o dinheiro público fosse investido prioritariamente?

Muito se discute hoje em dia sobre Judiciário, democracia, liberdade de expressão. A princípio, isso parece soar muito positivo, reflexo da maturidade de um povo atento aos direitos fundamentais. No entanto, todos esses debates, que consomem muitas energias, representam cuidado com quem mais precisa, com os reais gargalos do desenvolvimento social e econômico do País? Ou é sobretudo uma preocupação com nossa pauta ideológica, com os interesses e as circunstâncias do nosso grupo político?

Política democrática é alteridade. De outra forma, por mais que haja eleições e mandatos a prazo fixo, tudo se resume a mais do mesmo: privilégios e benesses a quem está próximo do poder.

Quando olhamos a cidade, quais problemas vemos? Os que dificultam o meu dia a dia ou os que atrapalham a vida dos outros? Fala-se muito em cidadania, mas, diante dos nossos olhos, há pessoas sem nenhum direito, sem nenhum horizonte existencial mínimo. Como reagimos a esse fato brutal?

No ano que vem haverá eleições municipais. Será que algum candidato irá propor, por exemplo, um programa audacioso para conhecer, entender e enfrentar as necessidades das pessoas em situação de rua, bem como as causas que geram esse drama? E, mais, um programa assim seria visto como um diferencial pelo eleitorado?

Oficialmente, todos são iguais perante a lei. Mas nem todos têm os mesmos direitos. Nem todos recebem a mesma atenção do poder público. Refiro-me aqui às pessoas em situação de miséria, aos que têm fome, aos que não têm teto. Quando eles serão cidadãos? Quando serão vistos como pessoas, merecedoras do cuidado e do investimento do poder público?

No início de uma noite de janeiro deste ano, sofri um furto, o mesmo que muitas pessoas já sofreram: um garoto de bicicleta tomou o celular da minha mão. Estava perto de casa, corri e logo bloqueei o aparelho e as contas bancárias. Achei que estava protegido. Ledo engano. Em minutos, a gangue conseguiu dominar meus e-mails, meu perfil na Apple etc. Foram longas horas de ataques, das mais diversas modalidades, numa batalha em que eles sempre pareciam estar um passo à frente. Refiro-me a “eles” porque, pela quantidade de movimentos simultâneos, certamente havia várias pessoas atuando coordenadamente. Conseguiram apagar remotamente meus dois computadores e o tablet. Perdi todas as minhas fotos. Num determinado momento, pareceu que os ataques nunca teriam fim – e senti uma angústia muito forte.

Para piorar, um dos bancos, por equívoco, fez apenas o bloqueio temporário do cartão de crédito. Com isso, horas depois, na madrugada do dia seguinte, os assaltantes tentaram realizar algumas compras: dois uísques caros, uma corrente de ouro e três cafés da manhã pelo iFood, para serem entregues num endereço no centro da cidade. Essa última compra foi efetivada e, no dia 12 de janeiro, três pessoas tomaram um café da manhã à minha custa, valor este que depois foi estornado.

Conto tudo isso por uma razão. Esse café da manhã dos assaltantes despertou-me para a realidade. Ali, dei-me conta de que essas pessoas nunca tinham tomado um café da manhã similar ao que eu estava tomando na minha casa, sentado, lendo o jornal, comendo exatamente o que gosto de comer de manhã. A revolta com o que eu estava sofrendo passou. Os assaltantes tinham arriscado a liberdade e a vida e, ao fim, tinham conseguido um parco café da manhã, muito pior do que o que tomo tranquilamente todos os dias.

Não quero relativizar a gravidade desses crimes, especialmente contra idosos. Eles causam graves danos. Mas não sejamos ingênuos. O que essas pessoas – muitas vezes, essas crianças – receberam, ao longo da vida, da sociedade e do Estado? Quantos cafés da manhã decentes elas tiveram a oportunidade de tomar?

Certamente, todos nós queremos mudar essa realidade. Mas estamos dispostos a que a prioridade absoluta do poder público sejam as pessoas mais vulneráveis? Queremos que se invista pesado nelas: cifras altas, generosas, audazes? Não é só uma questão de dinheiro, mas, como diz o ditado popular – ligeiramente diferente da versão bíblica –, onde está o dinheiro, aí está o nosso coração.

Estamos dispostos a apoiar políticas públicas que vêm resolver não os nossos problemas, mas os dos outros? Ou, para conquistar nosso voto, basta que se faça o recapeamento da nossa rua? Pelo visto, a prática continua dando muito voto.

Um bom Natal a todos. Que a contemplação do presépio nos ajude a sermos um pouco menos obtusos.

*Advogado

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