segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Crédito: governo ou consumo?:: Renato Janine Ribeiro

As análises mostram que a popularidade presidencial depende pouco ou nada das denúncias de corrupção. Isso se vê desde, pelo menos, o governo FHC. As denúncias da "Folha" sobre a privatização das teles na sua gestão, ou as do mensalão no governo Lula não afetaram seriamente a popularidade de nenhum dos dois presidentes. Estudos recentes indicam que ela está ligada, sobretudo, ao crédito disponível para compra. É o que demonstra recente post no blog de José R. Toledo, no site de "O Estado de S. Paulo".

Podemos aprofundar este ponto - lembrando que o crédito ao consumidor e a confiança no (ou na) presidente são a mesma palavra... Crédito, confiança, fé, o latim "fides" e o inglês "trust" querem dizer uma única coisa: acreditar em outro. A crença tem algo de peculiar: ela não é provada, mais que isso, não é passível de prova. Há coisas que sei, porque as presenciei ou porque a ciência me diz que são verdadeiras. Mas há coisas em que acredito: na fidelidade de meu cônjuge, na lealdade de meus amigos, na honestidade do governante, na existência de Deus (ou no contrário de cada uma dessas "coisas"). Nada disso, ou pouco, pode ser provado, em alguns casos porque afeta o futuro, e este não nos pertence.

Vemos, na análise de Toledo, que a popularidade de Lula e, hoje, de Dilma Rousseff está ligada à irrigação de crédito na praça. Isso quer dizer que muitas pessoas, da classe média bastante baixa à quase alta, podem desfrutar de bens de consumo duráveis, como a linha branca e os automóveis, ou de serviços apetitosos, como viagens, pagando a prazo. Essa antecipação do gozo no tempo torna os governantes mais populares, até porque resulta de várias decisões políticas deles - desde as que mexem no sistema financeiro até as que tratam da distribuição de renda, do incentivo ao turismo ou à importação de bens baratos.

Assim, quando o eleitor premia com o voto o governante que aumenta seu poder de consumo, ele mostra sua confiança (sua fé) em alguém que ampliou o crédito (ou fé) do qual ele se beneficia. Uma fé retribui outra fé. Quem pode antecipar o desfrute de um bem, pagando-o a prazo, também concede um prazo adicional ao governo para que continue pela mesma via. O crédito ao consumidor se converte assim em confiança no governo.

Há um aspecto positivo - e um negativo - nessa troca de crenças. O lado bom é que os cidadãos, enquanto consumidores, estão decidindo seu voto a partir de vantagens ou desvantagens que eles realmente percebem. Parece ter passado o tempo em que a manipulação ideológica presidia a decisão do voto, sobretudo arrastando os eleitores menos instruídos (os mais numerosos) a votar contra seus próprios interesses. Um dos ganhos do governo Lula é que, quando o eleitor vota levando em conta o Bolsa Família (e um leque de outros programas, não assistenciais, como o Luz para Todos) e não a distribuição de cestas básicas, ele reduz sua dependência do "coronel" local. Leva mais em conta o seu interesse próprio. Aliás, a economia e a política capitalista nascem, justamente, exortando as pessoas a considerar mais seus interesses reais do que suas ilusões.

Mas há um aspecto negativo nesse fenômeno. Uma forte tendência de nosso tempo é reduzir a cidadania ao consumo. Deste assunto trataram vários cientistas sociais, entre eles, Albert Hirschman. Há uma perda, quando questões de interesse público são reduzidas a ganhos e perdas pessoais imediatos ou quase; quando discussões que interessam o futuro de todos, a começar pela família de cada um, são reduzidas ao prazer das pessoas no presente; quando a construção de projetos, que sempre depende de uma poupança, de um adiamento no desfrute, para que seja possível realizar algo grandioso, é subordinada não apenas ao ganho imediato, mas ao consumo, supressão, destruição.

Isso é visível quando pensamos no globo e em seu futuro. Como diz Sylvia Earle em seu "The world is blue - How our fate and the ocean"s are one", o verde depende do azul: a natureza e a própria vida dependem da vida da água, em especial a do oceano - que, nas últimas poucas décadas, sofreu uma destruição maior do que nos milhões de anos anteriores.

Em francês, o verbo "user" significa, não "usar", mas desgastar: o consumo desgasta. Assim, se traz popularidade ao governante, também hipoteca o futuro. Lembrei que crédito e confiança são palavras próximas, e que aumentar o consumo é a chave - na verdade desde o "iogurtinho" que, notava FHC, os pobres começavam a consumir - para ampliar a confiança no governo. Confiar e crer são palavras que remetem ao futuro. Mas o futuro do consumo é de pouco prazo, é imediato. O que é consistente depende de um futuro mais longo - o da construção, que por sua vez exige adiamento do gozo, poupança, educação. O problema, quando a popularidade do governante depende do crédito ao consumo, é que o longo prazo é sacrificado ao curto, a educação ao entretenimento.

Mas, para concluir, pensemos em dois pontos contraditórios: primeiro, isso acontece no mundo todo. Não é um irônico privilégio dos subdesenvolvidos e atrasados. Segundo, e paradoxalmente, podemos ter a esperança de que este seja um momento de passagem. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Mas depois para de se lambuzar.

Faltava, a milhões, a linha branca. Ela praticamente se tornou um direito humano. Ter a primeira geladeira não quer dizer que a pessoa se viciará no consumo. O importante é que sejamos capazes, vencida essa etapa pela qual se dá uma promoção social pelo acesso a bens importantes de consumo, de evitar o consumismo e apostar num futuro sustentável.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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