- O Estado de S. Paulo
Franceses vão escolher novo presidente da República num quadro político confuso
Não é só no imaginário político e cultural dos povos que a França ocupa lugar de destaque. O país é peça-chave nas relações internacionais, no jogo entre as potências e na dinâmica da União Europeia (UE). Seria impossível uma UE com a França seguindo o caminho da Grã-Bretanha ou fazendo corpo mole. O Estado francês pesa nas relações do Leste com o Oeste, dos Estados Unidos com a Rússia, do Norte com o Sul. E isso mesmo com a França não podendo mais ser a potência de antes.
Aprendemos a pensar a política, a democracia e a liberdade com os franceses. O Iluminismo ajudou a aproximar os humanos das luzes da Razão. A Revolução de 1789 foi um farol do progressismo mundial e incorporou-se ao DNA da modernidade, das lutas sociais, do Estado democrático e dos ideais de igualdade. Ambos os eventos contribuíram decisivamente para nos trazer ao século 21.
Hemingway escreveu Paris é uma Festa para registrar os anos em que lá viveu. Celebrou a cidade-luz vendo-a não pelos cartões-postais, mas por um estilo de vida (a noite, os cafés, o vinho, a comida), com suas belezas e dificuldades. Era uma Paris quase inocente, bem diferente da cidade atual, com suas banlieues apinhadas de émigrés e de pobres afetados pelos preços imobiliários, com sua vida “líquida”, turistas em magotes e ruas cheias de indignação, em que há protesto e resistência, mas pouca proposição.
Em abril e maio os franceses escolherão, em dois turnos, um novo presidente da República. O quadro político é confuso e está pondo a França na berlinda, submetendo à prova seu patrimônio político e cultural.
Partidos e candidatos se mostram sem viço. O sistema político parece à beira do precipício. O próprio modo de vida está em acelerada transfiguração. Apostas e cálculos políticos são suspensos, perguntas ficam sem resposta, utopias desvanecem. A sombra do regressismo antidemocrático parece estacionada sobre a França libertária e culta.
A primeira impressão é que tudo se está recompondo, menos a extrema direita, unida em torno de Marine Le Pen e da Frente Nacional, que continuam a cavar as trincheiras da xenofobia e da recusa à Europa.
Do lado de seu antagonista “típico-ideal”, o caos. O presidente François Hollande desistiu de se candidatar a um segundo mandato, soterrado pelos baixos índices de popularidade. Nas primárias do Partido Socialista, o ex-primeiro-ministro Manuel Valls foi derrotado por Benoît Hamon, de uma ala mais radical, que se apoiou na frustração dos militantes com a guinada liberal do governo, vista como contrária à tradição da social-democracia.
Conseguirá o PS manter sua unidade, retomar a força eleitoral e repor seus valores no imaginário social? Hamon quer fazer o socialismo francês ir para “fora do centro”, de modo a recuperar uma identidade perdida e magnetizar a classe trabalhadora com um programa anticapitalista que inclui a renda básica, a cobrança de impostos sobre robôs e a legalização da maconha.
Poderia ter chance se conseguisse atrair o que está à esquerda do PS (ecologistas, comunistas, radicais). Ali, porém, instalou-se um deserto propositivo, em parte disfarçado pelo radicalismo fundamentalista, que invariavelmente contesta a própria social-democracia.
Na centro-direita, os Republicanos alijaram da disputa o ex-presidente Sarkozy e o experiente Alain Juppé, entregando a candidatura a François Fillon, político pouco expressivo que, dias após a nomeação, foi envolvido numa complicada trama protagonizada por sua esposa, suspeita de ter sido remunerada por atividades e empregos tidos como inexistentes. A repercussão do fato poderá desidratar Fillon.
Em meio a isso, surge um candidato para fazer o papel do “novo”: Emmanuel Macron, jovem, rico, culto, apoiado por um movimento independente (En Marche!), nem de esquerda nem de direita, cheio de promessas de mudança. Até agora, corre por fora e vem sendo poupado de maiores críticas. Tem o centro à disposição, situação consolidada com a adesão à sua campanha de François Bayrou, líder do centrista Movimento Democrático (MoDem).
Macron flutua sobre o sistema político, os partidos em crise e os lugares demarcados da política francesa. Abre-se oportunisticamente para o liberalismo e a esquerda moderada, propondo um “terceiro tipo” de esquerda, que proclama a liberdade e a solidariedade como valores mais importantes que a igualdade, explorando o individualismo prevalecente. Mantém assim distância tanto da social-democracia, o “segundo tipo”, quanto do “primeiro tipo” (o comunismo), ambos ancorados na fraternidade de classe e na intervenção do Estado. É favorável à globalização e defende sem vacilações a União Europeia, o que o torna contraponto “ótimo” do nacionalismo de Le Pen.
A social-democracia parece solta no ar. Arrasta consigo, por inércia, o conjunto das esquerdas. Sente falta da antiga base operacional, assentada na vida organizada, na classe operária e na estrutura sindical. O próprio Estado de bem-estar, por ela modelado, tem sua reprodução dificultada pelas novas formas de produção capitalista e pela corrosão das fontes de financiamento. Sem potência, a social-democracia não consegue se renovar. E quando maior é a necessidade de políticas capazes de contestar a desigualdade, o desemprego e os problemas ambientais.
Até agora, os prognósticos só não oscilam no que diz respeito a Marine Le Pen, a única a se beneficiar da confusão, já que não encontra quem a confronte com eficácia. O “populismo”, a ideia demagógica de resgatar a França para os franceses e a promessa de um “Frexit” devem levá-la ao segundo turno, desde que neutralize as denúncias dos últimos dias de que dois de seus assessores também estão ligados a empregos fictícios.
Há as pesquisas, claro. As mais recentes dizem que Macron derrotará Le Pen no segundo turno por 63% a 37%. Sondagens eleitorais, porém, costumam errar. E ainda faltam dois longos meses até o primeiro turno de 23 de abril.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp
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