Para
responder com franqueza, e deixando de lado o que não entendo (fico na torcida
pelo fim da pandemia), temo que continuemos a “não ver”. Talvez o maior
problema do país seja a desigualdade. E ela “se naturalizou”. Podemos até vê-la
e fazer comentários gerais a seu respeito. Mas, no dia a dia, como o problema
vem de longe, acabamos por, implicitamente, aceitá-la. E esta talvez seja a
maior dificuldade para obter o que, em geral, mais desejamos: que o país
continue crescendo economicamente. Na cultura tradicional é como se crescimento
equivalesse a melhor distribuição de renda. Existe, é claro, uma relação entre
a prosperidade econômica e o bem-estar geral. Mas é enganoso crer que basta a
economia crescer para as “questões sociais” se resolverem.
Nos
dias que correm, não só a oferta de empregos está reduzida como as
transformações tecnológicas do mundo requerem maior capacitação profissional.
Torna-se mais visível que educação e saúde são requisitos para a modernização
da sociedade e da economia. Como, entretanto, somos mais de duzentos milhões de
pessoas, os setores dominantes parecem não se dar conta de que no longo prazo
não haverá prosperidade com tanta miséria. Quem sabe a crise atual, dupla, a de
saúde e a do desemprego, despertem não só “o governo”, mas cada um de nós. Quem
sabe nos permita “ver” melhor e perceber que a transformação necessária é mais
profunda e mexe com as pessoas, com cada pessoa, e não só com as instituições.”
*Fernando
Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República. “Annus horribilis”, O
Globo/O Estado de S. Paulo, 3/1/2021.
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