domingo, 24 de julho de 2022

George Gurgel* - A Flor da Memória

O espetáculo “A Flor da Memória”, realizado por José Carlos Capinan e Roberto Mendes, em Salvador, no último dia 17 de julho, foi uma maravilha, um deslumbramento.

Uma viagem ao tempo da poesia, da música, através dos relatos afetivos, das convivências e das parcerias musicais destes dois consagrados artistas brasileiros.

As memórias pessoais e familiares, assim como o processo de criação de Capinan e Roberto vão sendo lembrados, visualizados, recitados e cantados através das parcerias de mais de 20 anos.

Um mundo cultural e um mundo espiritual se abrem com a flor da memória a partir do Sertão, do mar da Bahia, do Recôncavo e de Santo Amaro, irradiando belezas por toda a parte.

Uma viagem nas nossas próprias vidas, no mundo em que vivemos, nas nossas humanidades, no Brasil que temos e o que queremos ter.

Uma noite encantada, que maravilha de ser!

“A Flor da Memória” nos animou, nos temperou e nos desafia nesses ásperos momentos que estamos vivendo para a valorização dos nossos valores culturais, espirituais, ancestrais e atuais. Leva-nos também a celebrar a vida em cada um de nós, nas nossas comunidades, na sociedade brasileira, nos tornando uma melhor humanidade, no caminho de uma sociedade sustentável. A sustentabilidade como possibilidade a ser construída para o Brasil e para toda a humanidade.

A sociedade atual é insustentável

Vivemos permanentemente o conflito entre o Ter e o Ser.

As transformações vertiginosas ocorridas e em curso na sociedade moderna e seus impactos na natureza mudam significativamente a vida política, econômica e  social a nível global e regional, transformando a maneira de ser e estar  de cada um de nós. Consolidamos um modelo urbano e industrial, concentrado em algumas regiões do planeta, que modificaram e modificam as relações da humanidade com a natureza, impactando a vida cultural e espiritual dos povos.

Este modelo hegemônico insustentável foi transformando, destruindo e modificando os valores das sociedades anteriores, impactando o cotidiano das pessoas, os hábitos e os costumes seculares de preservação da vida em todo o planeta.

A base científica e técnica da sociedade atual, principalmente a partir do aparecimento da internet – do funcionamento das redes de  comunicação em escala mundial –, construiu uma nova dinâmica nestas novas relações sociais, econômicas, culturais e espirituais, modificando as nossas crenças e nossos valores, proporcionando uma troca de informações em tempo real, entre diferentes povos e culturas, de uma maneira vertiginosa, nos trazendo a sensação da nossa incapacidade de acompanhar este mundo novo, mudando radicalmente a nossa percepção do real, no tempo e no espaço – território onde vivemos e construímos nossas vidas.

A realidade e os valores em questão estão em permanente transformação, nos modificando como ser humano e impactando de uma maneira, muitas vezes irreversível, a própria natureza.

Assim, cada vez mais, a pluralidade, a quantidade e a qualidade de informações impactam o nosso dia a dia. As fake news fazem parte da vida política, econômica e social.  Vivemos criando desejos nas redes sociais e nos shoppings, os quais na maioria das vezes não conseguimos realizar.

A pandemia atual, como as outras acontecidas na história da humanidade, nos desafia e nos coloca a refletir sobre a fragilidade humana e o mundo em que vivemos. O consequente isolamento social e o trabalho em home office criam novas realidades, narrativas e conflitos para afirmar, negar ou construir outras possibilidades de ser e estar, impactando a nossa vida em sociedade.

Aqui, destaque-se a capacidade, cada vez maior, da Ciência e da Tecnologia no cotidiano das pessoas, através das Tecnologias da Informação, que impacta de maneira vertiginosa o mundo do trabalho, da educação e da cultura. A globalização em curso e o avanço das comunicações constroem realidades fragmentadas, impactando a vida de cada um de nós e de toda a humanidade.

O que estamos fazendo e podemos fazer no caminho da sustentabilidade

“A Flor da Memória” nos anima e nos alenta na construção desta sociedade sustentável.  A vida pode ser melhor e será. Aponta e nos desafia em acreditar na capacidade de transformação da sociedade, preservando a nossa diversidade cultural e espiritual, dando sentido às nossas vidas, nos tornando uma melhor humanidade.

Capinan e Roberto Mendes reafirmam as possibilidades brasileiras de construção de uma civilização plural, contemporânea com os nossos humanismos construídos historicamente com a afetiva e efetiva contribuição das nossas ancestralidades indígena, africana, portuguesa e de outros povos que vieram e continuam a contribuir para esta nossa civilização tropical.

“A Flor da Memória” resgata e nos faz refletir sobre a nossa cultura de raiz, sobre o que somos e o que poderemos ser como humanidade.

Os valores vigentes podem ser transformados, incorporando novas narrativas econômicas, sociais, educacionais, culturais e espirituais comprometidas com a diversidade, pluralidade e tolerância, respeitando a diversidade, em harmonia com a natureza.

Assim, a fina flor da nossa memória sinaliza e nos remete à construção de um novo humanismo, que inclua toda a humanidade, na perspectiva de Ser e não de Ter.

Capinan e Roberto Mendes são carpinteiros valorosos nesta construção!

O que cada um de nós pode e está fazendo nesta direção?

Estamos desafiados(as).

Salve a Cultura, a Paz e a Democracia!

Viva Capinan!

Viva Roberto Mendes!

*Professor da UFBa, da Oficina da Cátedra da Unesco e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

Permita-me leitor transmitir-lhe, a seguir, trechos do maravilhoso “Yáyá Massemba”, de Capinan e Roberto Mendes

É o Semba do mundo Calunga

Batendo Samba em meu peito

Kawo Kabiecile Kawo

Okê aro Okê     

Quem nos pariu foi o ventre de um navio

Quem me ouviu foi o vento do vazio

Do ventre escuro de um porão

Vou baixar no seu terreiro

Epa raio, machado, trovão

Epa justiça de guerreiro

Ê semba ê

Samba à

O Batuque das ondas

Nas noites mais longas

Me ensinou a cantar.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Capinan é um dos meus letristas favoritos.