O Globo
Cinquenta e três nações já foram convencidas em sigilo a virar depósitos de deportados, segundo reportagem
Dia sim, outro também, tanto no Oriente Médio
como na Europa prossegue a selvagem “exibição fálica de armas”, expressão
cunhada pelo sociólogo Muniz Sodré. Nada de novo no front além dos 408kg de
urânio enriquecido iraniano que escapuliram do tonitruante bombardeio americano
de dias atrás, da obliteração de mais famintos em Gaza e da
devastação contínua na Ucrânia. É o horror
a céu aberto.
Bem mais opaco é o negócio que o governo Donald Trump decidiu oferecer a dezenas de países para fazer sumir levas de imigrantes não documentados e “liberar” os Estados Unidos desse sangue indesejável. Segundo investigação do jornalista americano Nick Turse publicada no Intercept, o plano resultaria na criação de uma espécie de gulag global onde despejar essa gente.
Tudo com o beneplácito da Suprema Corte
americana, que decidiu, na semana passada, permitir deportações sem aviso
prévio ou oportunidade para a defesa do migrante. Foi ligeirinha e sem maiores
explicações a decisão da maioria conservadora (6 votos a 3), quase ao estilo de
um Hugo Motta — ela simplesmente reverteu uma ordem federal anterior que
suspendia a prática. As opiniões discordantes se concentraram em três das
quatro magistradas mulheres — Sonia Sotomayor, Elena Kagan, Ketanji Brown
Jackson. Para elas, a decisão majoritária constituiu uma clara violação dos
direitos constitucionais e humanos em solo americano, além de representar um
“grosseiro abuso de poder” da Suprema Corte. Tricia McLaughlin, porta-voz do
Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (o temido ICE), cujos
agentes têm se notabilizado por truculência perversa, qualificou a decisão como
“vitória para a segurança do povo americano”.
A investigação empreendida por Turse parte de
um memorando interno de Marco Rubio, chefe do Departamento de Estado, datado de
14 de junho passado e obtido originalmente pelo Washington Post. Estava
endereçado a diplomatas postados em 36 países do terceiro e quarto mundos,
cujos cidadãos foram recentemente ameaçados de ser barrados ao entrar nos
Estados Unidos. A ação punitiva, dizia o documento, se baseava em
justificativas variadas: desde o país em questão “não dispor de autoridade
central competente nem cooperativa no fornecimento de documentos confiáveis”
até ser patrocinador de terrorismo. Contudo o Departamento de Estado oferecia
ao país infrator uma forma de mitigar a adoção da penalidade — aceitar
deportados de outras nacionalidades.
Foi assim que 53 nações, muitas das quais
ostentam os piores índices sociais, econômicos e democráticos do mundo, já
foram, de acordo com a reportagem, submetidas em sigilo a convencimento para
virar depósitos de deportados. Ou, como escreve Turse, um “arquipélago de
injustiças”, composto justamente por países acusados pelos próprios Estados
Unidos de violar direitos humanos ou por nações à beira de guerras civis.
De Angola a Zimbábue, passando
por Djibouti,
República do Congo e Sudão do Sul,
a lista preenche um alfabeto inteiro formando um gulag global para migrantes
desenraizados à força — até mesmo do continente em que nasceram ou viviam.
Na mesma semana do voto a favor da deportação
em massa de Trump, o noticiário digital jorrou detalhes sobre um grupo de
migrantes mais rarefeito. Expatriaram-se temporária e voluntariamente como
convidados à stravaganza de três dias numa Veneza alugada por US$ 20 milhões,
onde se comemorou o “casamento do século”, de Jeff Bezos com Lauren Sánchez.
Alguns chegaram de iate, outros em avião particular. Falcões foram alugados
pelo noivo para que pombos não perturbassem o cenário idílico. Na Ilha de San
Giorgio Maggiore, local da cerimônia propriamente dita, perto de 30
ex-fuzileiros navais haviam sido contratados para garantir a segurança dos 200
convivas — Bezos tem seu próprio plantel de dez guarda-costas em tempo
integral, tão prontos a agir quanto agentes do ICE. Lady Gaga e Elton John
formaram um dueto, ao preço de US$ 1 milhão para cada um. Difícil não evocar a
obra-prima de F. Scott Fitzgerald, até porque Leonardo DiCaprio, que
interpretou “O Grande Gatsby” no cinema, foi uma das estrelas da festança.
No romance ambientado na decadência dos anos
1920, o sonho corrompido pela fortuna de Jay Gatsby foi inatingível. O dos
magnatas no poder em 2025 será diferente?
Nenhum comentário:
Postar um comentário