DEU NO VALOR ECONÔMICO
Quando a sociedade está em movimento, as instituições têm que se adequar a ela, sob pena de atraírem para si o descrédito da população e provocarem a relativização de direitos individuais e coletivos. Esse descompasso hoje é cristalino e sua manutenção não é um conforto para uma democracia jovem como a brasileira.
A democracia tem se consolidado a duras penas, e os avanços, obtidos como síntese de conflitos. Ao longo do embate, a Constituição Cidadã de 1988, em algumas particularidades, virou letra morta; em alguns temas vem sendo relativizada pela Justiça; e em outros, perdeu as características em função de um movimento ideológico que foi na direção contrária de suas formulações, em especial no que diz respeito ao papel do Estado e à economia. Junto com a relativização da Constituição pós-ditadura, ocorreu também uma ofensiva contra o Ministério Público, instituição que, desde o final dos duros tempos autoritários, reivindicava autonomia para a defesa de direitos individuais e coletivos. Acusado de ativismo no período da redemocratização, o MP foi duramente combatido no período de virada ideológica dos períodos FHC. No espaço que acabou deixando a descoberto, floresceu o ativismo judicial - entenda-se do Judiciário - que tem abarcado funções do Legislativo e do próprio MP e se espelha numa ideologia conservadora, principalmente no âmbito político-eleitoral, de tutela da democracia e do voto.
Uma nova "clientela" de cidadania emergiu
No período de redemocratização, a sociedade estava em movimento e a Constituição obrigou as instituições - com erros e acertos - a se adaptarem aos novos tempos. Hoje o país passa por um novo ciclo de mudanças. No Brasil pós-Constituinte, os direitos de cidadania diziam respeito a menos da metade da população que tinha acesso a trabalho formal e ao mercado de consumo. Num país com gravíssimos problemas de distribuição de renda, individual e regional, a capilaridade maior de programas de transferência de renda produziu uma rápida ascensão de grandes setores da população que antes viviam abaixo da linha da pobreza; programas adicionais, como os que deram maior facilidade de acesso das classes mais baixas da pirâmide social ao curso superior, cumpriram também o seu papel de engordar as classes médias brasileiras. Um crescimento econômico mais forte, e alguns anos longe das recessões promovidas para reduzir o consumo - conforme a receita de uma política monetária baseada em metas de inflação, juros altos e política fiscal apertada - bastaram para que ocorresse uma mudança substancial na "clientela" para a qual se deve garantir direitos de cidadania. Hoje, há cidadãos que não existiam na época da Constituição cidadã.
No momento em que ocorre a inclusão social de grandes massas da população, as instituições brasileiras, todas, são obrigadas a refletir sobre o seu papel na democracia, e principalmente sobre o papel dos novos cidadãos na política. Há uma crise, sim, mas não é institucional. É uma crise de adequação das instituições a uma nova realidade que, embora não seja ideal, trouxe ganhos para uma grande parcela de sua população. Nessas circunstâncias, tende a aumentar a "clientela" das instituições, brasileiros que ascenderam à cidadania, ou mais precisamente à consciência da cidadania.
O exemplo mais evidente dessa crise são os partidos políticos, até porque eles refletem de forma quase imediata um conflito latente entre as classes economicamente hegemônicas e as massas que ascendem à cidadania com igual direito a voto. Mas não são os únicos. A mídia, como aparelho privado de ideologia, ainda não incorporou os novos cidadãos à sua realidade. O Ministério Público, acuado pelo ativismo judicial, tem sido mais tímido na defesa da cidadania. O Judiciário, ao assumir a tutela dos demais Poderes, tem muitas vezes se constituído numa barreira conservadora à inclusão, de fato, das classes menos privilegiadas .
A dessincronização com uma sociedade que se move é geral. O cuidado que se deve ter, no entanto, é com as expectativas. As demandas de cidadania reprimidas têm levado repetidamente ao descrédito das instituições. A ansiedade de dar resposta a essas frustrações tem influenciado movimentos políticos na sociedade civil vestidos de panacéia para todos os males - por exemplo, o Movimento Ficha Limpa, que até agora apenas jogou para o Judiciário a tutela das eleições. As decisões finais das urnas estão sendo tomadas todas por plenos de juízes. É necessário um debate mais profundo sobre as respostas a demandas de cidadania, que garantam o direito igualitário ao voto, à saúde, à educação e às oportunidades, sob pena de o país parar para debater novas panacéias, ao se concentrar sobre um senso comum perigoso para as instituições democráticas, de que todos os seus problemas estão concentrados nas instituições políticas, cujos mandatários ascendem pelo voto.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
Quando a sociedade está em movimento, as instituições têm que se adequar a ela, sob pena de atraírem para si o descrédito da população e provocarem a relativização de direitos individuais e coletivos. Esse descompasso hoje é cristalino e sua manutenção não é um conforto para uma democracia jovem como a brasileira.
A democracia tem se consolidado a duras penas, e os avanços, obtidos como síntese de conflitos. Ao longo do embate, a Constituição Cidadã de 1988, em algumas particularidades, virou letra morta; em alguns temas vem sendo relativizada pela Justiça; e em outros, perdeu as características em função de um movimento ideológico que foi na direção contrária de suas formulações, em especial no que diz respeito ao papel do Estado e à economia. Junto com a relativização da Constituição pós-ditadura, ocorreu também uma ofensiva contra o Ministério Público, instituição que, desde o final dos duros tempos autoritários, reivindicava autonomia para a defesa de direitos individuais e coletivos. Acusado de ativismo no período da redemocratização, o MP foi duramente combatido no período de virada ideológica dos períodos FHC. No espaço que acabou deixando a descoberto, floresceu o ativismo judicial - entenda-se do Judiciário - que tem abarcado funções do Legislativo e do próprio MP e se espelha numa ideologia conservadora, principalmente no âmbito político-eleitoral, de tutela da democracia e do voto.
Uma nova "clientela" de cidadania emergiu
No período de redemocratização, a sociedade estava em movimento e a Constituição obrigou as instituições - com erros e acertos - a se adaptarem aos novos tempos. Hoje o país passa por um novo ciclo de mudanças. No Brasil pós-Constituinte, os direitos de cidadania diziam respeito a menos da metade da população que tinha acesso a trabalho formal e ao mercado de consumo. Num país com gravíssimos problemas de distribuição de renda, individual e regional, a capilaridade maior de programas de transferência de renda produziu uma rápida ascensão de grandes setores da população que antes viviam abaixo da linha da pobreza; programas adicionais, como os que deram maior facilidade de acesso das classes mais baixas da pirâmide social ao curso superior, cumpriram também o seu papel de engordar as classes médias brasileiras. Um crescimento econômico mais forte, e alguns anos longe das recessões promovidas para reduzir o consumo - conforme a receita de uma política monetária baseada em metas de inflação, juros altos e política fiscal apertada - bastaram para que ocorresse uma mudança substancial na "clientela" para a qual se deve garantir direitos de cidadania. Hoje, há cidadãos que não existiam na época da Constituição cidadã.
No momento em que ocorre a inclusão social de grandes massas da população, as instituições brasileiras, todas, são obrigadas a refletir sobre o seu papel na democracia, e principalmente sobre o papel dos novos cidadãos na política. Há uma crise, sim, mas não é institucional. É uma crise de adequação das instituições a uma nova realidade que, embora não seja ideal, trouxe ganhos para uma grande parcela de sua população. Nessas circunstâncias, tende a aumentar a "clientela" das instituições, brasileiros que ascenderam à cidadania, ou mais precisamente à consciência da cidadania.
O exemplo mais evidente dessa crise são os partidos políticos, até porque eles refletem de forma quase imediata um conflito latente entre as classes economicamente hegemônicas e as massas que ascendem à cidadania com igual direito a voto. Mas não são os únicos. A mídia, como aparelho privado de ideologia, ainda não incorporou os novos cidadãos à sua realidade. O Ministério Público, acuado pelo ativismo judicial, tem sido mais tímido na defesa da cidadania. O Judiciário, ao assumir a tutela dos demais Poderes, tem muitas vezes se constituído numa barreira conservadora à inclusão, de fato, das classes menos privilegiadas .
A dessincronização com uma sociedade que se move é geral. O cuidado que se deve ter, no entanto, é com as expectativas. As demandas de cidadania reprimidas têm levado repetidamente ao descrédito das instituições. A ansiedade de dar resposta a essas frustrações tem influenciado movimentos políticos na sociedade civil vestidos de panacéia para todos os males - por exemplo, o Movimento Ficha Limpa, que até agora apenas jogou para o Judiciário a tutela das eleições. As decisões finais das urnas estão sendo tomadas todas por plenos de juízes. É necessário um debate mais profundo sobre as respostas a demandas de cidadania, que garantam o direito igualitário ao voto, à saúde, à educação e às oportunidades, sob pena de o país parar para debater novas panacéias, ao se concentrar sobre um senso comum perigoso para as instituições democráticas, de que todos os seus problemas estão concentrados nas instituições políticas, cujos mandatários ascendem pelo voto.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
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