O julgamento no Supremo é chance para que se jogue luz sobre um tema objeto de muita manipulação
Assunto em que se misturam aspectos morais, éticos e religiosos, o aborto desafia a necessidade de equilíbrio na abordagem do tema, principalmente por agentes públicos que atuam em um Estado constitucionalmente laico, obrigado a ficar equidistante de credos. Este é o entendimento racional da questão, mas, infelizmente, nem sempre é assim que transcorrem os debates.
Em agosto, haverá mais uma oportunidade no Supremo de reflexão sobre o assunto, a partir de uma audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber, relatora de ação impetrada pelo PSOL em favor da descriminalização do aborto. O partido contesta a parte do Código Penal que pune o procedimento.
O desafio é o da racionalidade, sem abrir mão de conceitos em defesa dos direitos humanos. No caso, da mulher. É positivo que o Supremo tenha experiência em discussões neste campo, tendo tomado decisões realistas, conectadas à vida real, como deve ser no laicismo, blindadas contra pressões religiosas.
Foi assim na liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias, um avanço da ciência, em que foram colocados sobre a mesa argumentos com base em princípios religiosos sobre o momento em que surge a vida. Ficou-se com a ciência, como deveria ser. O assunto voltou à Corte na permissão do aborto de fetos anencefálicos (sem cérebro), exceção incluída no Código Penal ao lado do estupro e do risco de vida da mãe.
No pano de fundo do tema, há pontos que não se podem perder de vista. Um deles é que, antes de qualquer outra implicação, o aborto é problema de saúde pública. E mais: a proibição legal não costuma evitar o aborto. Ao contrário, sustenta uma indústria clandestina e perigosa de clínicas despreparadas. Daí, o alto índice de mortalidade de mulheres, vítimas de procedimentos mal feitos.
Estima-se que, no Brasil, a cada dois dias morra uma mulher por complicações em aborto clandestino. Uma legislação sensata salvaria vidas. Segundo a revista de ciência “Nature”, pesquisa feita em setembro do ano passado contabilizou que 25,1 milhões de mulheres fazem aborto todos os anos no mundo. Respondem por 45,1% das 55,7 milhões das interrupções de gravidez. Onde o aborto não é criminalizado, 87,4% dos procedimentos são realizados de forma segura. Onde há leis duras, apenas 25,2% são feitos de maneira adequada.
Parece óbvio, mas o que chama a atenção é a grandiosidade dos números. O julgamento da ação do PSOL é uma chance para se jogar luz em um tema objeto de muita manipulação, embora seja fundamental para salvar vidas. Não faz bem à discussão que no Congresso haja manobras rasteiras de bancadas religiosas para, de forma escamoteada, proibir o aborto em qualquer circunstância, mesmo nas já previstas no Código Penal. Já se tentou contrabandear o veto para projetos de lei sobre outros assuntos. Isso não ajuda a que a sociedade faça uma reflexão sobre o tema, tendo o máximo de informações objetivas possíveis.
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