- O Globo
Presidente deveria estar à frente da mobilização que seu próprio governo está fazendo contra o vírus
Enquanto os dirigentes de mais de cem países do mundo orientam seus cidadãos para que evitem aglomerações, e mesmo proíbem reuniões públicas, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, diz que o surto do novo coronavirus no mundo não é tão grave assim, e convoca manifestações populares para apoiar seu governo contra os demais poderes da República.
Diz-se que um estadista é aquele que se preocupa com as futuras gerações, enquanto um populista só pensa na próxima eleição. Essa talvez seja a melhor definição do tipo de líder que ele é, populista mais preocupado com seus interesses eleitoreiros imediatos.
O mundo está de pernas para o ar diante de uma pandemia mortal de que não se sabe o alcance, pois a contaminação é muito mais rápida do que vírus anteriores, e o presidente Bolsonaro diz que outras gripes mataram muito mais. Uma análise superficial e apressada, pois ainda não se tem confirmação sobre o grau de letalidade do Covid-19, nem se sabe se as notificações de países como o Irã ou Rússia, entre outros, são verdadeiras.
Além do mais, temos particularidades que nos ajudam, como o calor agora no verão, mas outras que atrapalham, como a falta de capacidade do sistema único de saúde (SUS) de atender a uma demanda que pode crescer exponencialmente a partir de determinado número de contagiados.
Mas, ao mesmo tempo, o próprio presidente diz que a crise não é tão grave, e convoca manifestação nas ruas, quando o mundo inteiro proíbe aglomerações e cancela eventos. Seria importante um gesto de sobriedade, de inteligência, do presidente do país pedindo a seus seguidores para não irem para a rua, pois isso pode acelerar a epidemia.
Perguntado se faria isso, Bolsonaro, como sempre, esquivou-se de responsabilidade. Disse que não havia convocado ninguém, e que os organizadores das manifestações é que deveriam se manifestar. Além de ser uma mentira pública, pois há vídeos de sua fala em Boa Vista no fim de semana passada convocando seus seguidores a participarem das manifestações, Bolsonaro demonstra que ainda não entendeu o que está acontecendo no mundo.
Ele deveria estar à frente da mobilização que seu próprio governo está fazendo contra a disseminação do vírus, que hoje é mais importante do que qualquer outra coisa. Ainda bem que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, está se revelando competente para, ao mesmo tempo em que não quer alarmar, monta esquema de emergência para que o sistema de saúde pública esteja o mais bem organizado possível se chegarmos a uma situação mais dramática.
Há ainda uma atuação junto a hospitais particulares que também atendem ao SUS para que ampliem sua atuação se for necessário.
Houve uma evolução também na parte econômica, com o ministro Paulo Guedes saindo de uma paralisia oficial, quando disse que estava tranquilo diante da crise, para enviar uma carta ao Congresso pedindo a mobilização dos políticos para a aprovação das várias reformas.
A aceitação de que a situação é grave, e que é preciso aprovar as reformas imediatamente, já é representa um avanço, mas cheio de contradições internas. O governo ainda não enviou para o Congresso as reformas tributária e administrativa, o que impede que se comece a discuti-las.
A Câmara havia dado início à tributaria, disposta a tomar as rédeas da discussão com base em um projeto do economista Bernardo Appy, mas agora, diante da gravidade da situação, quer que o Palácio do Planalto tome a frente das ações.
O presidente Bolsonaro, no entanto, já disse a assessores que não está com pressa para liberar a reforma administrativa. Na verdade, ele teme que as corporações, especialmente os funcionários públicos, reajam a certas mudanças propostas pela equipe econômica.
Mesmo que elas só valham para os que entrarem no serviço público depois da aprovação da reforma, o presidente não quer confrontar corporações que lhe são fiéis. Prefere confrontar a realidade.
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