Eleições municipais não trataram do fundamental: renda básica e emergência climática
Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.
Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?
Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política
brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no
nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país
conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido
forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em
2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação
de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma
esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não
têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.
No Rio de Janeiro,
se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a
divisão entre PT, PDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo
turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à
vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto,
passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.
Ela
também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que
produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na
potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo
embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A
remoção [de Trump], que ocorrerá em
breve, abre uma bela janela de oportunidades.
IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?
Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades
imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema
ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas
eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel
relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa
bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que
ocorre em matéria de saneamento básico.
Os partidos brasileiros ambientalistas se
dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa
política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante.
A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda
está completamente defasada.
Vamos
ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora.
Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.
IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?
Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que
também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com
grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.
IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?
Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes,
mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse
mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma
sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.
IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?
Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é
política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva,
rústica.
Houve
um avanço em relação à última eleição, que foi
dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas
que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões
fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em
profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com
baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.
Há
candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila],
no Rio Grande do
Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.
Não
há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista
com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está
diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam
personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam
programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.
A solução americana adotou
uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com
uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória,
em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais
importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas
maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [Joe] Biden a vitória.
Aqui, quem aparece com esse papel?
No Rio de Janeiro,
três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma
oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a
essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido
de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a
experiência do socialismo real, por
exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo
importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.
IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?
Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não
estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a
maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano.
Não tem portador para uma visão profética, por ora.
IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?
Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí
veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se
deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela
se retirou da política e da Teologia da Libertação –
deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração
desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade.
De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam
valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar
algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com
uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua
com Crivella”.
Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.
IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?
Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos
na Teologia da Libertação,
mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses
cultos de fundo materialista preponderassem.
IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?
Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das
personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço
público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As
periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por
toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.
IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?
Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem
inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com
origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um
exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido
portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito
embrionário, um novo despertar.
Essas
eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um
pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de
paciência também e de trabalho diário, cotidiano.
IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?
Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções
interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela
está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades
periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer.
Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso
da Marielle Franco. Ela era
socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é
uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão
começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios
setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que
se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.
A
minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante
nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela
acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens
cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera
pública. Marielle é um caso
de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A
relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é
interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é
uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí
que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.
IHU On-Line – Como as Humanidades podem dialogar com as demais ciências nas universidades?
Luiz Werneck Vianna – Essa é uma questão difícil. Ainda
há muitas pontas a serem construídas nessa direção. Mas eu tenho a impressão de
que isso tem melhorado. Olhando para a minha universidade, vejo que a relação
tem melhorado. Mas ainda não tenho condições de falar com maior clareza sobre
isso.
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