domingo, 2 de janeiro de 2022

Wanda Engel*: Novo atentado aos pobres

O Globo

A sede de destruição do atual governo parece não ter fim. Agora é a vez da política de combate à pobreza, reconhecida internacionalmente, cuja pena de morte foi decretada com a criação do Auxílio Brasil.

Além de acabar com o Bolsa Família — extensão e aperfeiçoamento da Rede de Proteção Social —, o novo programa não será apenas uma mudança de nome. Destruirá princípios e estruturas, frutos de importante evolução histórica.

Nessa trajetória, a assistência começou a ser tratada como política pública a partir da Legião Brasileira de Assistência e passou a ser considerada como direito do cidadão e dever do Estado, com a Constituição de 1988. Seguiu-se a Lei Orgânica da Assistência Social, propondo a estruturação de um Sistema Único de Assistência Social (Suas), que definia o papel de cada ente federativo.

Houve uma importante evolução conceitual. A pobreza passou a ser vista como multidimensional, e “não natural”, tendo a família como unidade básica de produção/reprodução ou de superação.

Uma política pública de superação da pobreza deveria propiciar um patamar básico de desenvolvimento familiar, com a garantia de uma renda mínima; diagnosticar a situação de cada família, para identificar demandas e oferecer serviços adequados; e garantir o acesso a políticas de desenvolvimento humano (educação e saúde) e de geração de renda.

O instrumento básico, tanto para o acesso a esses programas quanto para o acompanhamento das famílias, deveria ser um cadastro único.

Criado em 2000 pelo governo de Fernando Henrique, aperfeiçoado e expandido pelos de Lula e Dilma, o CadÚnico viabilizou a integração dos programas da Rede de Proteção Social, dando origem ao Bolsa Família.

Desde a criação, sua gestão foi uma atribuição dos municípios, por meio dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), presentes nas áreas mais pobres dos 5.568 municípios.

As desastrosas consequências advindas da pandemia do coronavírus acabaram por definir a necessidade de criar um auxílio emergencial. A iniciativa baseou-se no indivíduo e utilizou um aplicativo do governo federal para inscrição dos beneficiários, ignorando as unidades familiares, o Suas e o papel dos Cras.

Em termos de foco, foi um desastre. Cadastraram-se não pobres e não se cadastraram os “pobres dos pobres”. Foram muitos milhões de reais desviados da verdadeira função do programa.

Surge agora o Auxílio Brasil, que, apesar de não mais ser emergencial, parece estar garantido apenas até 2022. O cadastro passa a ser feito diretamente com o governo federal. Sua função será apenas viabilizar a transferência de renda, sem a engenharia necessária à promoção das famílias.

A crença por trás da proposta parece ser que a pobreza é um fenômeno natural e, portanto, insuperável. Que a transferência de renda deva permitir apenas uma sobrevida indigente aos cerca de 50 milhões de brasileiros pobres e que sirva para que esse exército de miseráveis venha a votar em função de tal “benesse”.

*Foi ministra de Assistência Social do governo Fernando Henrique, responsável pela implantação do CadÚnico

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