quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Leilão do Santos Dumont ainda precisa de ajustes

O Globo

É positiva a decisão do Ministério da Infraestrutura de leiloar o Aeroporto Santos Dumont, no Centro do Rio, isoladamente, e não mais em bloco com Jacarepaguá (na Zona Oeste do Rio), Montes Claros, Uberaba e Uberlândia (em Minas Gerais), como previa a sétima rodada de leilões do governo federal. A mudança é resultado do grupo de trabalho criado para analisar o modelo de concessão, após críticas do governo fluminense e da prefeitura carioca às regras do edital aprovado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) no fim do ano passado.

No entanto permanece sem solução o principal problema do edital: o risco de esvaziamento do Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim/Galeão. A proposta de turbinar o Santos Dumont para torná-lo mais atraente ao mercado embute a ideia de aumentar o número de voos, ampliar as instalações e até autorizar rotas internacionais. É um absurdo, levando em conta as características técnicas, a história e a vocação desse aeroporto como origem e destino de voos curtos.

Não há dúvida de que a concessão do Santos Dumont à iniciativa privada trará benefícios. Mas ela não pode ser vista como algo isolado. Como noutras cidades em situação semelhante, Santos Dumont e Tom Jobim/Galeão precisam funcionar de forma complementar, cada um com suas vocações estabelecidas. O Santos Dumont, como todos sabem, é um terminal doméstico, com número limitado de voos. Qualquer desequilíbrio porá em risco o aeroporto internacional, com consequências desastrosas para a economia do estado e da cidade, porta de entrada de turistas estrangeiros no país.

Não se pode ignorar que a operação no Santos Dumont tem reflexo inexorável na vida da cidade, não só em virtude do ruído — o aeroporto fica próximo do Centro e da Zona Sul —, mas também de trânsito. Qualquer aumento no número de voos precisa ser analisado sob a ótica do impacto de vizinhança. Da mesma forma, a ampliação das instalações, às margens da já maltratada Baía de Guanabara, teria de passar pelo crivo dos órgãos ambientais do estado e do município. Não basta resolver com uma canetada.

O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), deixou claro que pretende levar a questão à Justiça se as demandas da cidade não forem atendidas. Em entrevista ao GLOBO, disse que, se não houver garantia de restrição de voos no Santos Dumont, a prefeitura manterá uma representação no Tribunal de Contas da União (TCU), que analisa a concessão. “Se não tiver um edital que proteja os interesses do Rio de Janeiro, (…) a vida deles não vai ser fácil com a prefeitura do Rio”, afirmou.

É preciso reconhecer que o governo federal não está tão irredutível como antes. Errou ao pensar que poderia fazer a concessão do Santos Dumont sem levar em conta as demandas legítimas do governo fluminense e da prefeitura carioca. Prova disso é que criou um grupo de trabalho para rever o modelo, desistiu de oferecer o Santos Dumont com outros terminais e concordou em dar assento à prefeitura nas discussões. Uma proposta em discussão é passar a concessão ao estado, para que leiloe o aeroporto. Poderia ser uma solução sensata. Qualquer que seja o caminho adotado, será preciso avançar para resolver o principal: restringir o número de voos no terminal doméstico. Para o Rio, tão importante quanto levantar o Santos Dumont, é impedir a derrubada do Tom Jobim/Galeão.

Irregularidades no Auxílio Emergencial revelam falta de controle do governo

O Globo

Um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) que aponta irregularidades no pagamento do Auxílio Emergencial em 2020 expõe de forma contundente o descontrole nos benefícios, a despeito da boa intenção de socorrer milhões de brasileiros afastados do mercado de trabalho durante a pandemia. De acordo com a auditoria da CGU, o governo pagou indevidamente R$ 809 milhões a 1.819.284 cidadãos que não tinham direito à ajuda. A análise diz respeito à segunda fase do programa, entre setembro de dezembro de 2020, com parcelas de R$ 300 mensais.

O valor pago irregularmente corresponde a 3,2% do total desembolsado. Não é tão pouco quanto parece. Primeiro, porque o número de cidadãos que avançaram indevidamente sobre o dinheiro público é significativo (supera a população de capitais como Florianópolis, Porto Alegre, Belém ou Recife). Segundo, porque o descalabro comprova a inépcia do governo para identificar os brasileiros que realmente teriam direito ao benefício.

A CGU descobriu que havia entre os beneficiados 15.571 mortos, 32.282 detentos em regime fechado, 16.680 residentes no exterior, 821.991 trabalhadores com vínculo formal, 160.662 que já recebiam simultaneamente outros benefícios, 239.773 com renda familiar incompatível com as regras do programa, 442.175 que já eram contemplados com o Bolsa Família (atual Auxílio Brasil) e 75.635 que sacaram mais parcelas que o previsto. Dos R$ 809 milhões que se esvaíram, apenas R$ 44,4 milhões (pouco mais de 5%) foram recuperados, via devolução de valores ou estorno de parcelas não sacadas. Há, portanto, R$ 764,5 milhões “pendurados” na conta do governo.

Os auditores afirmam que os pagamentos indevidos demonstram “possível insuficiência das providências adotadas pelo Ministério da Cidadania para a adequada identificação dos beneficiários do auxílio emergencial”. Recomendam ao governo corrigir inconsistências cadastrais, confirmar informações, fazer ajustes na base de dados e adotar validações adicionais para confirmar a elegibilidade do beneficiário.

Não há dúvida da importância do Auxílio Emergencial, especialmente no primeiro ano da pandemia, quando as atividades econômicas foram paralisadas ou fortemente impactadas. A ajuda financeira foi adotada em vários países e, no caso brasileiro, funcionou para deter o avanço da pobreza e da miséria.

Mas boas intenções não bastam. É lamentável que cidadãos tenham embolsado recursos públicos indevidamente, enquanto outros aptos a receber o benefício foram deixados à míngua. São fartos os relatos de famílias que passaram fome ou só conseguiram comer graças a doações. A auditoria torna evidentes as falhas dos cadastros oficiais e dos mecanismos adotados pelo governo para controlar o pagamento desses benefícios. Não deveria ser tão difícil checar dados óbvios, como se alguém está vivo, preso ou tem emprego formal. Os vários órgãos do governo nem sequer se comunicam. A auditoria da CGU deve servir de alerta aos demais programas assistenciais.

Um passo de cada vez

Folha de S. Paulo

Fusão de PSL e DEM é primeiro resultado relevante da reforma política de 2017

A fusão do PSL com o DEM, aprovada nesta terça-feira (8) pelo Tribunal Superior Eleitoral, surge como primeiro resultado concreto e relevante da reforma aprovada em 2017, cujo vetor principal é a redução do número absurdo de partidos na fauna política brasileira.

A partir de agora, as duas siglas se encontram na recém-nascida União Brasil e desfrutam de vantagens inalcançáveis para cada uma delas caso continuassem em voo solo.

De saída, terão à disposição R$ 780 milhões do fundo eleitoral, montanha de fazer inveja a qualquer partido em busca de votos.

Além disso, a bancada da União Brasil aparece como a quarta maior do Senado e, com folga, a primeira força da Câmara. Conta por ora com 81 deputados, contra 53 do segundo colocado, o PT.

Essa diferença, porém, não deve durar muito. Estima-se que de 20 a 30 deputados outrora no PSL deixarão a nova agremiação rumo ao PL, sigla que acolheu o presidente Jair Bolsonaro. De certa forma, portanto, a União Brasil nasce sob a sombra da desunião.

Ironia à parte, a própria debandada anunciada ajuda a explicar o ímpeto dos líderes do PSL e do DEM. Eles decerto perceberam que, sem a fusão, seus partidos se tornariam tão pequenos que, cedo ou tarde, teriam dificuldades de vencer a cláusula de desempenho.

Implantada pela reforma de 2017, a regra estabelece certas condições para as legendas acessarem o pródigo financiamento público e a propaganda no rádio e na TV. Neste ano, será preciso obter 2% dos votos nacionais para a Câmara ou eleger 11 deputados federais, com alguma distribuição regional.

O sentido do dispositivo é claro: siglas sem relevância mínima devem desaparecer. Por trás desse mandamento está a constatação de que a fragmentação partidária excessiva torna o Parlamento disfuncional, criando barreiras desnecessárias ao processo legislativo.

Nada justifica a presença de 24 representações na Câmara, como ocorre hoje em dia. A existência de tantas agremiações se explica não pela diversidade de ideias a serem defendidas —estas podem se abrigar em correntes dentro dos partidos—, mas pela generosidade das normas que autorizavam a distribuição de recursos públicos.

É claro que as novas regras não produzirão todos os efeitos de uma hora para a outra. A União Brasil, por exemplo, ainda não sabe dizer muito bem a que veio, e a quantidade de partidos resistirá em patamar elevado por vários anos.

Não faz mal. O gradualismo é mesmo o melhor caminho para a reforma política. Aos poucos haverá convergência para um número adequado de agremiações —e, se não for pedir demais, elas se organizarão em torno de plataformas programáticas, e não do puro instinto de sobrevivência.

Ainda incipiente

Folha de S. Paulo

Convém de fato obter mais dados para avaliar a necessidade de 4ª dose de vacina

Uma das muitas coisas de que o governo Jair Bolsonaro (PL) nos privou foi a possibilidade de confiar nas orientações técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde.

Nos últimos tempos, a pasta, que deveria ser um polo de divulgação de boa informação científica, mostrou-se mais de uma vez fonte de fake news —chegou a escrever há pouco numa nota técnica que a hidroxicloroquina era efetiva no manejo da Covid-19, e a vacina não.

Mas o ministério conta com um corpo qualificado de servidores e consultores, que, a despeito das lambanças da cúpula, continuam a produzir documentos de qualidade e relevância. É o caso do texto recém-divulgado que concluiu não haver ainda dados que permitam recomendar a todos uma quarta dose de imunizante.

Por ora, apenas imunossuprimidos recebem o reforço adicional. A dúvida sobre estender a medida ao restante da população não assola apenas as autoridades brasileiras, mas as de todo o mundo.

Até aqui, apenas Israel começou a ministrar a quarta dose de forma mais disseminada. Nesta quarta (9), o governador João Doria (PSDB) afirmou que pretende fazê-lo em São Paulo, sem fixar data.

No país do Oriente Médio, os resultados, ainda preliminares, mostram um aumento de duas vezes na proteção contra infecções e de três contra quadros graves. É preciso, entretanto, considerar que se trata de uma população pequena e vacinada muito rapidamente.

Já se contam alguns meses desde que os idosos israelenses receberam sua terceira dose, e é até certo ponto esperado que sua imunidade comece a decair. Ademais, Israel usou quase exclusivamente vacinas de RNA (Pfizer e Moderna), enquanto nós nos servimos de uma combinação bem mais variada.

O efeito de uma quarta dose depende não apenas dos fármacos utilizados mas também do nível de circulação do vírus. Quem teve a doença e foi vacinado está mais protegido do que quem só passou por uma das experiências.

É bastante provável que populações mais vulneráveis, como idosos e portadores de comorbidades, ainda precisem receber reforços, mas o nível de evidência à nossa disposição ainda não é suficiente.

Será preciso atenção às taxas de hospitalização e óbitos dos diferentes recortes demográficos. Daí surgirão os sinais mais confiáveis para uma tomada de decisão.

Está entendendo como funciona?’

O Estado de S. Paulo.

Líder do governo na Câmara escancara o que todos já intuem: o País não tem presidente, pois as vontades de Bolsonaro não têm qualquer valor

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), deu uma explicação muito didática sobre o posicionamento da gestão de Jair Bolsonaro a respeito da desoneração de combustíveis e que vale para praticamente qualquer assunto que é debatido no Legislativo: “O governo não tomou nenhuma iniciativa para mandar nenhuma Proposta de Emenda à Constituição (para desonerar combustíveis). É o presidente Bolsonaro que diz querer zerar os tributos dos combustíveis. O presidente Bolsonaro é contra a vacina, e o governo dá vacina para todo mundo, está entendendo como funciona?”.

Sim, deputado, o País já entendeu perfeitamente bem como funciona: Bolsonaro, eleito com 55 milhões de votos, é um presidente decorativo, cujas determinações são ignoradas por seu próprio governo e por seus aliados no Congresso. A bem da verdade, é uma sorte danada que as sandices de Bolsonaro não sejam levadas a sério nem na Esplanada dos Ministérios, mas a esdrúxula situação mostra a que ponto o presidente esculhamba o cargo que ocupa.

Alvo de críticas na mais recente ata do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC), as propostas de isenção de tributos sobre combustíveis da Câmara e do Senado são tão irresponsáveis quanto irreais. Qualquer presidente sensato não cogitaria abrir mão de uma arrecadação estimada em até R$ 100 bilhões em troca de uma incerta redução de centavos no preço final ao consumidor. De quebra, como destacou o Copom, as medidas podem acelerar a já pressionada inflação, desvalorizar ainda mais o real ante o dólar e exigir a continuidade do ciclo de aperto na taxa básica de juros.

Depois de três anos, esperar sensatez de Bolsonaro é ingenuidade, mas as explicações de Ricardo Barros jogam luz no cenário político: o que Bolsonaro diz não tem valor, e o apoio do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, a uma das propostas de desoneração, contrariando o Ministério da Economia, só confirma o divórcio entre o presidente e seu próprio governo. “Bolsonaro disse que quer zerar impostos dos combustíveis, certo? Como o governo não escreve o texto para isso, porque é contra, quem deveria escrever o texto? A Economia, mas a Economia é contra, não quer escrever o texto, e aí o Parlamento está tomando uma iniciativa”, afirmou Ricardo Barros.

É aqui que o líder do governo escancara o fato de que nem a opinião do ministro da Economia, Paulo Guedes, que assentiu com o desmonte constitucional das regras fiscais, precisa ser levada em conta. Em certo ponto, Barros até tem razão, dado que o supostamente liberal Paulo Guedes já se mostrou favorável a subsidiar o diesel e a indústria, com a redução linear das alíquotas do IPI. Diante de uma administração que se recusa a governar e que não sabe o que quer, o País assiste ao triunfo de um parlamentarismo de ocasião e precisa contar com a responsabilidade de uns poucos heróis que restaram. Salvo esparsas iniciativas vindas de outras áreas do Executivo, o Centrão reina sozinho.

Se Ricardo Barros foi quem melhor traduziu o valor de face do pensamento bolsonarista e a resposta do Legislativo a essas sandices, coube aos especialistas do Fundo Verde definir o trabalho do Ministério da Economia. O fundo, que apresenta retornos consistentes desde sua criação, classificou a proposta de eliminar os impostos sobre os combustíveis como “um desvario completo”, algo “que não resiste a um minuto de considerações sobre sua qualidade ou conveniência”. “O governo Bolsonaro chega ao fim de maneira praticamente indistinguível do governo Dilma do ponto de vista econômico, bem como o ministro da Economia converge para o ministro da Fazenda que gerou o maior desastre econômico de que se tem registro”, diz o relatório. “Quem poderia imaginar que o governo eleito em 2018 acusando o governo petista de instaurar o comunismo e implementar políticas econômicas totalmente equivocadas iria começar o último ano de seu mandato recorrendo às piores práticas do governo petista?” Como diz o título da análise, trata-se da mais perfeita representação de “terraplanismo econômico”.

O Brasil no último pelotão dos latinos

O Estado de S. Paulo

A economia regional perde impulso, segundo o Fundo Monetário Internacional, e o Brasil se destaca por seu baixo potencial de crescimento

Superado com vigor o primeiro impacto da pandemia, a economia latino-americana perde impulso, volta ao ritmo anterior ao surto de covid-19 e se defronta com três desafios simultâneos: garantir contas públicas sustentáveis, elevar o potencial de crescimento econômico e promover importantes ganhos sociais, favorecendo a coesão e combatendo as desigualdades. Formulados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o diagnóstico e a receita são dificilmente contestáveis por qualquer político responsável, informado e disposto a trabalhar pelo desenvolvimento de seu país e da região. Nesse quadro, as perspectivas de expansão do Brasil são inferiores, sem surpresa, às de outras grandes economias da América Latina e do Caribe – uma desvantagem visível já no período petista e mantida, e até agravada, nos três anos de mandato já completados pela presente administração.

A forte reação econômica foi suficiente, no ano passado, para a maior parte da região voltar aos níveis de atividade anteriores à pandemia, normais para os latino-americanos e geralmente inferiores aos de outros emergentes, principalmente da Ásia. O Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e do Caribe encolheu 6,9% em 2020, cresceu 6,8% em 2021 e deve expandir-se 2,4% neste ano e 2,6% no próximo, segundo informe do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, desde janeiro chefiado pelo brasileiro Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central do Brasil. Na América do Sul, o PIB deve aumentar 1,8% em 2022 e 2,2% em 2023. O ganho estimado para 2021, de 7,1%, compensou com folga a perda de 6,5% na onda inicial da pandemia. Nessas contas, a economia brasileira se distingue duplamente das demais.

A primeira diferença aparece no balanço de 2020. Nesse ano o PIB do Brasil diminuiu 3,9%, num recuo bem menor que o observado em outros países da América Latina e de grande parte do mundo capitalista – uma vantagem proclamada mais de uma vez pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A segunda, bem visível quando se volta ao cenário mais comum, confirma o menor vigor da economia brasileira, já evidente em anos anteriores ao choque inicial da pandemia.

O crescimento projetado para o Brasil – de 0,3% em 2022 e de 1,6% em 2023 – é bem inferior ao estimado para outras economias da região. Exemplo: depois de uma perda de 5,9% em 2020, a produção chilena cresceu 12% em 2021 e deve aumentar 1,9% neste ano e também no próximo. As taxas estimadas para a Colômbia são de 4,5% em 2022 e de 3,7% em 2023. O salto do ano passado, de 10,2%, superou amplamente a queda de 2020, estimada em 6,8%.

Houve avanços inegáveis na maior parte da América Latina, no último quarto de século. As economias ficaram menos frágeis, houve menos crises graves e os países tornaram-se menos dependentes do socorro do FMI. Acordos de financiamento ainda foram assinados, mas em situações menos dramáticas e acompanhados de condições mais suaves.

No Brasil, o cenário favorável durou cerca de dez anos, neste século. Os padrões de governo começaram a ser afrouxados no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e entraram em colapso nos primeiros anos da presidente Dilma Rousseff. Muitos bilhões foram queimados em políticas erradas, como a dos “campeões nacionais”, enquanto se deteriorava a infraestrutura, a ineficiência era favorecida pelo protecionismo, a Petrobras era pilhada e a indústria de transformação perdia competitividade e relevância. A recuperação econômica nunca se completou, depois da recessão de 2015-2016, e as noções de planos e programas federais praticamente sumiram a partir de 2019.

O Brasil tem recuado duplamente – em relação à própria história de modernização econômica e em relação aos padrões mundiais e regionais. Embora menos industrializados, outros países latino-americanos têm mostrado dinamismo bem maior que o brasileiro, condições fiscais mais saudáveis e menor propensão a surtos inflacionários. As novas projeções do FMI confirmam a evidente desvantagem brasileira, mas quem, no Ministério da Economia, ainda leva a sério o FMI?

Negociações ainda detêm Putin na fronteira da Ucrânia

Valor Econômico

Obter um status independente garantido para a Ucrânia exigirá esforço diplomático de grande porte

O presidente russo Vladimir Putin viu uma oportunidade de tentar expandir seus tentáculos na vizinhança e criar um escudo de proteção para a Rússia nas divisões e rusgas entre os aliados ocidentais, Estados Unidos e União Europeia, e na perda de prestígio da política externa americana após a caótica retirada do Afeganistão. O pretexto usado para colocar 106 mil soldados ao longo da fronteira ucraniana, que não é novo, veio do pedido do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) acelerasse os trâmites de adesão de seu país. A escalada russa abriu possibilidade de ações que não se veem desde a Guerra Fria: tanques russos invadindo um país vizinho e a criação de “esferas de influência” para a Rússia, hoje uma pálida cópia decadente da antiga e poderosa União Soviética.

A Rússia não é mais uma potência econômica, mas conserva-se como uma potência militar temível por dispor do enorme arsenal nuclear da era stalinista. Putin, ex-membro da KGB, manteve seus métodos de pensamento e conduta do passado. Os EUA e seus aliados são inimigos sempre dispostos a tramar sua derrubada e os adversários do Kremlin merecem ser esmagados. O despotismo de Putin dura 22 anos, mais do que o de Stálin e pode se estender por mais tempo.

A tentativa de reviver o império da URSS é ciclotímica e depende em parte da situação política doméstica e das lealdades de seus vizinhos. Em 2008 Putin investiu contra a Georgia, em 2014 anexou a Crimeia e hoje ampara os separatistas de Donbas na Ucrânia, um país que considera sem nacionalidade própria, e sua independência da Rússia, uma anomalia histórica.

A Ucrânia virou preocupação para Putin após protestos de massa desalojarem seu aliado, o presidente Petro Poroshenko, substituído pelo comediante Zelensky, que busca adesão à Otan como proteção ao expansionismo russo.

Putin manteve ótimas relações com o presidente americano Donald Trump e a espionagem russa prestou serviços eleitorais a Trump na campanha em que venceu Hillary Clinton. Não seria surpresa se a Rússia estivesse por trás das acusações de um promotor ucraniano contra o grupo Burisma, de gás natural, de cuja direção participava Hunter Biden, filho de Joe Biden, então candidato. Trump chantageou Zelensky para investigar o assunto, mas o episódio só serviu para aumentar a lista de ilegalidades que baseou processo de impeachment contra ele.

Putin tem aliados firmes em Belarús, vizinho da Ucrânia, onde faz exercícios com 30 mil soldados, e no Cazaquistão. Em dezembro, exigiu que a Otan não considerasse o pedido de adesão da Ucrânia, e, em seguida mobilizou tropas na fronteira do país. EUA e União Europeia, estremecidos por ações unilaterais de Biden para conter a China na Ásia, buscam uma linguagem comum para deter Putin. As sanções adotadas quando a Crimeia foi invadida não demoveram a Rússia de ameaçar novamente a integridade dos vizinhos.

Biden disse que o gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha, jamais entrará em operação se Putin invadir a Ucrânia. Para os europeus isso é um pesadelo. A UE importa 40% de todo seu gás da Rússia e um terço de seu petróleo, além de boa fatia das commodities das quais os russos são grandes produtores, como cobre, níquel, alumínio, platina, valádio e paládio. Enquanto Biden fala duro, o chanceler alemão Olaf Scholz e, com mais desenvoltura, o presidente francês, Emmanuel Macron, que disputa as eleições, tentam manter as negociações para demover Putin. O impasse prossegue e ameaça a segurança europeia.

A Rússia alega, com razão histórica, que as invasões de seu território sempre ocorreram pela fronteira oeste, na qual Ucrânia primeiro e Belarús, depois, tem as maiores extensões. Putin não aceita tropas da Otan, tidas como inimigas, em suas fronteiras. Quando a antiga URSS tinha seu Pacto de Varsóvia, essa possibilidade não existia. Putin quer recriar um simulacro em menor escala, com governos subservientes, e a Ucrânia é um obstáculo em seu caminho. UE e EUA defendem a soberania da Ucrânia, o que inclui sua decisão independente de aderir ou não à aliança militar. Mantidas as posições, entra-se em perigoso beco sem saída.

Obter um status independente garantido para a Ucrânia que a livre da ameaça russa sem que se alie aos supostos rivais de Putin exigirá esforço diplomático de grande porte. De qualquer forma, não há momento mais impróprio para uma visita do presidente Jair Bolsonaro ao país. Será difícil a Bolsonaro desvencilhar-se da propaganda de apoio às pretensões do déspota russo.

 

 

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