sábado, 23 de abril de 2022

Demétrio Magnoli: Culpa coletiva', parte 2

Folha de S. Paulo

Noção de culpa coletiva renasce dirigida aos russos, por cancelamento de indivíduos

Diese Schandtaten: Eure Schuld! ("Essas atrocidades: culpa sua!"). A frase acusadora, estampada sobre imagens dos campos da morte nazistas, surgiu nos cartazes de uma campanha publicitária patrocinada pelas autoridades americanas de ocupação na Alemanha do imediato pós-guerra. A noção de culpa coletiva renasce agora, mas dirigida aos russos, por atos de cancelamento de indivíduos: o tradicional torneio de Wimbledon acaba de anunciar que os tenistas russos serão barrados da competição.

"Eu não represento o Kremlin; represento Dostoiévski e Tchekhov, represento a cultura, o povo", registrou Daniil Dubov, um dos 44 enxadristas de ponta russos signatários de uma carta aberta de protesto contra a guerra de Putin. O tenista russo Andrey Rublev, um dos dez melhores do mundo, escreveu "Guerra não, por favor", na lente da câmera que filmava seu triunfo no torneio de Dubai, no final de fevereiro. As palavras deles importam para os russos e incomodam o Kremlin, que pode reagir com represálias, mas não para os promotores da culpa coletiva.

A noção de culpa coletiva adquiriu estatuto filosófico por iniciativa do teólogo luterano Martin Niemoller que, em outubro de 1945, redigiu a Declaração de Culpa de Stuttgart, do conselho da igreja evangélica na Alemanha. O texto não mencionava o apoio explícito das igrejas protestantes do país ao regime nazista, em seus primeiros anos, escolhendo universalizar a responsabilidade.

A culpa coletiva teve mil e uma utilidades. Niemoller serviu-se dela para diluir sua responsabilidade pessoal de antissemita militante que celebrou a ascensão de Hitler e só se converteu em dissidente quando o regime impôs a nazificação das igrejas protestantes. EUA, Reino Unido e URSS, potências ocupantes, utilizaram-se dela para ocultar o recrutamento de centenas de cientistas antes filiados ao partido nazista, inclusive criminosos de guerra, que desempenhariam papéis destacados em programas militares e aeroespaciais.

A pedagogia penitencial da culpa coletiva produziu um efeito paradoxal. Fartos da pregação acusatória, os alemães apoiaram a Vergangenheitspolitik ("política do passado") do chanceler Konrad Adenauer (1949-63), que anistiou milhares de nazistas e integrou alguns deles a seu governo, inclusive o chefe de gabinete Hans Globke, um dos avalistas jurídicos das Leis de Nuremberg.

Wimbledon simula atender pedidos de esportistas ucranianos, como Olga Savchuk, capitã da equipe feminina nacional, que tocou a antiga nota da culpa coletiva. De fato, opera sob pressão do governo britânico. Boris Johnson, esperto, compreendeu o impacto midiático da política simbólica nessa era das redes sociais e conectou a noção de culpa coletiva aos impulsos de cancelamento de indivíduos tão ao gosto da militância virtual. Nesse caso, a Ucrânia, as cidades arrasadas, os refugiados nada valem. Trata-se, unicamente, de cumprir objetivos de propaganda governamental.

Atrás da noção de culpa coletiva esconde-se uma curiosa interpretação do conceito de representação. Para lavar sua biografia, Niemoller sustentava que todos os alemães representavam o nazismo. Wimbledon está dizendo que Andrey Rublev e cada indivíduo russo representam o Kremlin. Não é muito diferente do estandarte da "culpa coletiva dos brancos" pelo sistema escravista, uma arma política empregada pelos sacerdotes da nova Inquisição identitária.

É fácil adivinhar as consequências práticas do cancelamento dos russos como indivíduos. Na Rússia, as exclusões auxiliam a campanha de Putin destinada a convencer o povo de que ele mesmo representa a nação inteira. Fora dela, enfraquecem a legitimidade das sanções econômicas e políticas contra o Estado russo, ferramentas indispensáveis para abreviar a guerra de agressão, confundindo-as com penalidades que miram indivíduos. O Kremlin agradece.

 

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