sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Pedro Doria - Quem nos representa?

O Globo

Debate de ideias movido a reflexão foi substituído por um jogo de signos que exibimos nas redes. Esse jogo não tolera ambiguidades

Na noite de terça-feira, já circulavam pelas redes do país as imagens de um grupo de alunos na PUC-Rio que atacavam o professor Michel Gherman, do Departamento de Sociologia da UFRJ.

— Não nos sentimos representados por ele — afirmou uma das estudantes.

O debate era sobre o brutal ataque do Hamas no sábado, dia 7, em Israel. A aluna, judia. Gherman, também.

— Antissemita — afirmou outro.

Gherman é especialista no estudo do antissemitismo. Houve quem lhe pedisse que deixasse a PUC.

Os vídeos verticais que flagram o momento em que alguém lacra, critica com veemência, em que alguém se impõe moralmente ao outro fazem parte de um rito digital. Os vídeos são necessários, na internet, para que torcidas se formem. Os a favor, os contra. Esses vídeos são mostra de quanto se perdeu de qualidade no debate público. Na democracia.

Há três chaves para compreender o fenômeno. Duas estão no que é falado pelos estudantes. Michel Gherman “não os representa” e é “antissemita”. A terceira se mostra nas centenas, possivelmente milhares, de mensagens nas redes sociais e inúmeros grupos no WhatsApp. Ele é o professor que, sendo judeu, defende o Hamas.

Num dos vídeos, Gherman não poderia ser mais contundente:

— Eu, defender o Hamas? Você é louco?

Ele, como muitos, perdeu gente próxima no atentado. Como especialista em antissemitismo, classifica o Hamas como organização antissemita. Como pode, na internet, se implantar confusão tão grande? Em que um professor é retratado como tendo opinião radicalmente oposta à que expressa com firmeza? Mesmo tendo assistido ao discurso, há ainda quem rubrique embaixo: pró-Hamas.

Um manifesto vindo da esquerda universitária, antissionista e em defesa dos palestinos, apoiou o professor. Gherman é sionista.

O cientista político Francis Fukuyama bate na tecla de que a questão identitária vai muito além de grupos minoritários. Toda política tornou-se identitária. O debate de ideias movido a reflexão foi substituído por um jogo de signos que exibimos nas redes. Esse jogo não tolera ambiguidades, sutilezas. É preciso ser preto ou branco. Tons de cinza ou outras cores são heresia que a política nas redes não é capaz de processar.

Quando uma aluna diz à mesa que aquele professor não “a representa”, é isso que ela está expressando. Sua expectativa não é ouvir um especialista tentando analisar com argumentos que a surpreendam, que a tirem do conforto, que a forcem a buscar uma resposta. Sua expectativa é que quem esteja na mesa repita, para seu conforto, exatamente o que ela já acha. É por isso, também, que outro aluno chama Gherman de antissemita. Porque a identidade “ser judeu” é étnica, é política, é cultural e vem com um conjunto restrito de opiniões. Ou pensa exatamente aquilo ou então não pertence ao grupo. Mais: é contra o grupo.

Talvez Gherman seja do tempo em que, como diz o provérbio judaico, entre dois rabinos havia três opiniões.

Em agosto, o cientista político André Lajst foi impedido de falar por estudantes de esquerda na Universidade Federal do Amazonas. Lá, era o contrário. Outro especialista em Israel, com opiniões distintas das de Gherman, mas desta vez quem não conseguiu lidar com o contraste de ideias foi a esquerda. “Ideólogo sionista expulso por antifascistas”, dizia uma das manchetes celebratórias que circulou pelas redes.

Lajst é um moderado, com duras críticas ao governo Netanyahu. Mas não é de esquerda. Sionista, sim, ele é. Como Gherman. Como muita gente. Como, aliás, este colunista. Só que a internet, portanto a política corrente, não tolera aquilo que complica.

O ruído identitário quer calar a reflexão de que o mundo precisa como nunca.


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