quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Só quem trabalha pode pagar o almoço

José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encasquetou com a idéia fixa de que ele vai livrar o Brasil da crise se fizer o brasileiro consumir. Por isso, fingiu descer do palanque eleitoral para trocar o papel de eterno candidato pelo de garoto-propaganda do consumismo redentor. A idéia parte do pressuposto aparentemente simples, mas na verdade apenas simplista, de que, se o consumidor comprar, o comércio venderá, levando a indústria a produzir, a empresa a empregar e o trabalhador garantirá, destarte, sua renda para assegurar o próprio poder de compra. Usando uma parábola futebolística da preferência presidencial, é como se uma partida começasse aos 90 minutos e o cronômetro fosse rodando para trás até chegar ao zero - com o resultado predeterminado pelo árbitro. Caberia aos jogadores dos dois times cumprirem as determinações prévias de fazer os gols necessários para a derrota, a vitória ou o empate determinados pelo supremo juiz.

A torcida do Corinthians, contudo, sabe que não se joga o jogo assim, mas na ordem inversa das coisas: ele começa no primeiro minuto e acaba no último; o destino das equipes é determinado por suas atuações; e, embora o juiz possa influir no resultado, não é esperado nem lícito que o faça. Pois dessa forma é também a vida real da economia: o campeonato começa com a disposição de produzir da sociedade, continua com a sua capacidade de poupar e se completa com a necessidade de consumir. Embora corintiano roxo, o presidente parece não ter percebido que os desmandos do clube levaram o time à Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. E foram o empenho e engenho dos jogadores, sob uma gestão adequada, que o levaram de volta à Primeira, não apenas a vontade suprema da diretoria nem o entusiasmo da torcida.

Sua Excelência Excelentíssima e seus áulicos poderão argumentar que a teimosa disposição dos japoneses para poupar não os salvou dos estilhaços da crise dos mercados financeiros internacionais. Japoneses são tão viciados em poupança quanto os brasileiros em gastança e tudo indica que estão sendo mais atingidos pelo tsunami de Wall Street que nós aqui nestes tristes trópicos. É fato também que os séculos de cultura e civilização vividos pelos europeus de nada lhes têm valido para livrá-los do pânico da recessão, que assombra o mundo. A antiga habilidade de produzir mais e melhor (inventando sistemas como a linha de montagem, por exemplo), que deu aos antigos colonos da Nova Inglaterra o domínio sobre o mundo, não impediu que a hecatombe fosse nutrida no seio de seu sistema financeiro. Mas isso não modifica leis fundamentais da sobrevivência humana que o apóstolo São Paulo resumiu numa frase genial, que o presidente Lula, mais que seus assessores, comunistas, et pour cause, ateus, deveria ter aprendido, após tantos anos de freqüência de missas: "Quem não trabalha não come."

Os economistas liberais da Escola de Chicago adaptaram a sentença curta, dura e sincera do primeiro teólogo cristão para "não há almoço grátis". E a bruta sentença paulina sobrevive nestes tempos bicudos de pós-capitalismo: não há produção sem consumo nem vice-versa. O trabalho precede a refeição e, em termos atuais, a paga. Pois a produção garante a remuneração, não cabendo nessa equação a velha dúvida entre a precedência do ovo sobre a galinha ou da galinha sobre o ovo. Talvez esta não seja a melhor hora para concentrar esforços na poupança, mas certamente comprar sem freios nada resolve, se não por qualquer outro motivo pelo menos pela óbvia razão de que só compra quem tem dinheiro no bolso e dinheiro, ao contrário do que Lula possa pensar, não é um papel pintado impresso na Casa da Moeda, mas um signo de troca resultante da capacidade de uma sociedade de produzir, poupar e consumir. Não se produzem riquezas só com vontade política e as complicadas malhas da economia real são impermeáveis às leis do marketing político, matéria na qual ele é mestre incontestável.

Lula é um gênio intuitivo fora do comum, muito acima da média, em matéria de comunicação política, por dominar como poucos a linguagem dos anseios populares de consumo e conforto: todos adoramos comer e comprar, mas quem gosta de trabalhar feito um mouro? Quando apela ao consumo, noçço líder atinge o que há de mais vulnerável no organismo humano: o estômago. Ele sabe o que faz: seu segredo de prestidigitador de massas é o cardápio do trabalhador, enriquecido de proteína pela oferta de emprego propiciada pela bonança internacional (que está, aliás, na raiz da crise, mas quem se importa com isso?) e pela mudança completa de seus hábitos de vida. O observador desapaixonado que for à periferia de qualquer cidade de qualquer região brasileira perceberá a olho nu essa conquista. O morador dessas "comunidades" de baixa classe atribui, com orgulho, o fato de poder possuir um televisor e trocar a geladeira - sem falar na rede elétrica que lhe chega, sem sequer a obrigação de pagar, graças aos "gatos" tolerados -, ao fato de ter, afinal, alguém de sua grei na gerência dos negócios republicanos. Daí, o prestígio do presidente subir sem parar feito um foguete sem rota de retorno.

Neste momento, os índices de desemprego não são assustadores, quem está desempregado come sua cota de Bolsa-Família e a alta burguesia financeira não se sente abalada pelo sismo de Wall Street. Enquanto essa satisfação generalizada perdurar, ninguém trará o foguete Lula de volta ao solo. Só que perdurar não é sinônimo de se perpetuar e não há dor perene nem glória perpétua. O castelo só não ruirá se a crise não cruzar seus muros e a arma para evitar isso é o trabalho árduo, tema inglório em comícios, e não o consumismo desenfreado, fácil de propor, mas difícil de cumprir sem a premissa da poupança e da produtividade.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

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