domingo, 14 de junho de 2015

O PT não roda mais a baiana

• Encontro em Salvador revela impasses do partido, que tenta evitar distanciamento da base

• Pela primeira vez em seus 35 anos de existência, o partido tem um governo que não executa o programa que aprovou nas urnas

Luiz Antônio Novaes – O Globo


SALVADOR — Luiz Inácio foi logo avisando: “O PT está machucado, mas bem vivo”. Quem acompanhou de perto o 5º Congresso Nacional do partido, em Salvador, realizado de quinta-feira a sábado, pode constatar que Lula tem razão: sim, o PT está vivo, só que bem mais machucado do que seus dirigentes ousam admitir.

Para a direção partidária, sempre obrigada a vender mais otimismo, o momento é de profunda reflexão, como costuma repetir seu presidente, Rui Falcão. Para as correntes mais críticas, a hora é de inflexão à esquerda, única forma de impedir a descaracterização completa do partido. Para os 750 delegados presentes — número pouco abaixo do esperado — a crise mistura perplexidade, desencanto, dispersão, um resto de esperança e uma enorme balbúrdia no plenário.

A origem do atual drama petista reside em algo inédito: pela primeira vez em seus 35 anos de existência, o partido tem um governo que não executa o programa que aprovou nas urnas. Pior do que não implementá-lo, a presidente Dilma Rousseff não alertou o partido do que iria fazer.

Lula viveu situação semelhante, ao chegar ao Palácio do Planalto, em 2003. Mas avisou antes, com a “Carta ao povo brasileiro”, no início da campanha eleitoral, em junho de 2002, que seria obrigado a adotar medidas de austeridade distantes do tradicional ideário petista. Agora, flagrada na mentira eleitoral, Dilma aprofunda o fosso entre o partido e sua base social mais militante, que já vinha sendo cavado ao longo de uma década de casos de corrupção envolvendo seus dirigentes.

Também incapaz de conter o avanço conservador que se organiza em torno do PMDB na Câmara e no Senado, o PT dá claros sinais de asfixia no espaço da política parlamentar, da ética pública e da economia. O resultado é o que se viu no encontro de Salvador: de um lado, um partido que clama à presidente por uma bandeira capaz de apaziguar a sua base e, com isso, poder defender o seu governo; de outro, uma presidente que pede ajuda ao partido para aprovar um ajuste fiscal que é a causa da insatisfação de sua base. Mirando-se fixamente, um espera que o outro tome uma iniciativa que nunca vem. O que a direção mais pede aos céus é que Dilma compre a briga pela taxação das grandes fortunas. Mas, nesse caso, a presidente passou por Salvador sem deixar nenhuma esperança.

Líder na câmara descarta nova CPMF
No segundo dia do congresso, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, deixou escapar, durante o café da manhã, que o governo pretendia resgatar a CPMF, mas agora só para os mais ricos. Parecia, enfim, uma das boas notícias tão esperadas pelo PT. Mas não foi preciso muito tempo para que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o desmentisse.

O líder do PT na Câmara, José Guimarães, já dera a senha de que o titular da Saúde estava falando sozinho. Para ele, não só o novo imposto sobre a saúde dos ricos não emplacaria, nem a reedição da velha CPMF ajudaria. Tudo o que diz respeito à contribuição, segundo o líder, só aumentaria a rejeição do governo petista na classe média. Mesmo com todos esses desmentidos, Rui Falcão continuou reafirmando que o ministro recebera sinal verde de Dilma para anunciar os estudos. Definitivamente, é cada vez mais difícil ser petista, até dentro do PT.

Nessa quase sinuca de bico, resta ao partido o discurso nada novo de culpar os inimigos de classe, as forças políticas conservadoras e a mídia. A estratégia fornece munição e acalma momentaneamente os militantes, mas não impede que o PT continue frequentando as páginas policiais e os presídios.

Sem novas bandeiras e iniciativas, perto da exaustão, a cúpula partidária tenta flertar com as ruas. As teses para o 5º Congresso, inclusive a do grupo majoritário, mostraram isso. O problema é que, desde junho de 2013, nenhuma das gigantescas manifestações populares no país contou com o protagonismo do PT. Ao contrário: nas duas ondas, o partido e o governo Dilma estiveram no centro das reclamações. Há dois anos, vinham da esquerda, especialmente da juventude; agora, em 2015, partem da direita.

Pressionado por todos os lados, tudo o que PT precisaria, neste momento, é manter intacto seus apoios no movimento sindical. Mas isso também começou a ruir em Salvador: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) esteve presente, mas só para protestar contra o ministro da Fazenda e a política econômica de Dilma.

No dia da abertura, na fila dos que esperavam para entrar no auditório onde Dilma e Lula discursariam, delegados ligados a bases sindicais panfletavam o mais contundente manifesto dirigido ao encontro.

Intitulado “O PT de volta para a classe trabalhadora”, o documento foi assinado por 422 dirigentes sindicais. Os primeiros 31 eram membros da Executiva Nacional da CUT. Quase irmã gêmea do PT, a CUT surgiu em 1983 em confronto aberto com a estrutura sindical varguista e depois, bem adaptada ao governo camarada, se esqueceu da promessa de extingui-la. Agora, inclinada para a esquerda, a CUT por pouco não roubou a cena do 5º Congresso. Não foi desta vez, mas a ação inédita e abertamente oposicionista da entidade mostrou que o perigo vem também do que a sociologia do trabalho adora chamar de chão da fábrica.

O crescente descolamento entre cúpula e base só consegue ser remediado pela presença de Lula. Especialista desde os tempos de sindicato na negociação e na conciliação de forças contrárias, ele é o único dirigente que ainda consegue calar o plenário e ser ouvido. Até chegar a vez de Lula discursar, delegados do 5º Congresso, especialmente os da Bahia, patrocinavam, da metade do salão para trás, cenas que beiravam o pugilato. Tudo começara assim que o governador-anfitrião, Rui Costa, tentava fazer seu discurso de boas vindas. Discursar é força de expressão, pois o petista Costa não conseguiu sequer concluir a primeira frase sem que vaias, gritos e palavras de ordem partissem de seus correligionários.

Uma delas assustou parte dos presentes: “Cabula, Cabula, Cabula”. Até que se entendesse que se referiam a um bairro de Salvador (onde a PM matara jovens negros em ação desastradamente justificada pelo governador), muitos ficaram lívidos julgando que, fora de todos os limites, os delegados-manifestantes estivessem gritando “Papuda, Papuda, Papuda”. A confusão durou cerca de meia hora, prolongando-se durante a fala do orador seguinte, o presidente Rui Falcão. Ele apelava, com fala lenta e contida, para que os militantes se dedicassem a mais reflexões. Havia na confusão boa dose da rivalidade local entre os grupos do ex-governador Jaques Wagner e o atual.

Chamado ao microfone, Lula apaziguou a guerra fratricida baiana e, por longos minutos a que os militantes costumam conferir aura mística, voltou a unir o partido numa só voz. Sem a verve habitual, mas explorando com perícia a imensa carga simbólica que representa na história do PT e do país, leu o discurso preparado pelos assessores do instituto que leva seu nome.

Como se ainda fosse presidente, gastou uns bons 15 minutos só de agradecimentos a autoridades presentes, da Bahia, do Brasil e do mundo. Explicou que optara pela leitura para não correr o risco de se empolgar e falar com o fígado. Não demorou para se perceber que, no texto preparado para a ocasião, expressaria o conhecido fígado do próprio partido.

Num dos momentos mais espantosos, quando abordava os desafios enfrentados pelas empresas de comunicação, muitas obrigadas a promover cortes de pessoal, Lula esteve perto de comemorar a demissão de jornalistas. Foi algo além dos ataques habituais à imprensa, mas, como sempre, isso serviu de mote para palavras de ordem contra a mídia, ouvidas no plenário.

Mesmo que o ex-presidente continue senhor absoluto do partido, os lulistas devem ter percebido algumas cenas perigosas, inimagináveis em outros tempos: muitos delegados preferiram acompanhar o discurso do líder máximo deitados no chão. A mesma falta de cerimônia se repetiu com Dilma: a diferença é que, no caso da presidente da República, boa parte dos presentes deixou o plenário antes do fim do pronunciamento. A maioria saiu ao perceber que a defesa que Dilma fazia do ajuste fiscal era bem mais contundente do que parecera quando, minutos antes, afirmara que não mudara de lado e que a medida seria um mero recuo tático.

A fina sensibilidade da plateia para o tema da corrupção, evidenciada mais uma vez quando pedidos de “cadeira, cadeira” foram confundidos com “cadeia, cadeia”, contrasta fortemente com o comportamento dos atuais comandantes do partido. Em nenhum momento, seja nos debates em plenário, seja nas entrevistas coletivas, Lula e os dirigentes do PT trataram como um dado da realidade o que todo o país sabe: que dois presidentes e dois dos seus tesoureiros já foram presos por envolvimento nos escândalos do mensalão e do petrolão. A primeira forma de fugir da questão é pedir socorro à ideologia: não há corrupção no partido; o que há é um processo de criminalização de seus principais dirigentes que, no limite, visa a extinguir o próprio PT. Quem mais recorre a esse expediente surrealista, além de Lula, é Rui Falcão.

Outra maneira de explicar, preferida da presidente Dilma, bate de frente com a primeira. Pela ótica dilmista, quem fez malfeitos, ao menos na Petrobras, só foi encarcerado porque os governos petistas, o dela principalmente, aparelharam e incentivaram os órgãos de investigação a ir até o fim, doa a quem doer. O que é ignorado no primeiro caso, a investigação real levada a cabo por Polícia Federal, Ministério Público e Justiça, abunda no segundo. Como se vê, a conexão lógica entre os dois discursos é zero.

O que os petistas não podem negar é que os tempos de José Dirceu, Genoino, Palocci e Delúbio vão sendo apagados da memória oficial do partido: nenhum deles foi citado no encontro. Só a João Vaccari, tesoureiro ainda preso, coube a honra de ser lembrado com prolongadas palmas. A sugestão foi de Marcus Sokol, líder há décadas da corrente “O Trabalho”, agrupamento trotskista que em remotos tempos incentivava as ações da tendência estudantil Liberdade e Luta.

Ausente do debate público, o fantasma de Dirceu assusta a altíssima cúpula petista, especialmente o Instituto Lula. “Estamos no mesmo saco, eu, o Lula, a Dilma”, disse o ex-presidente que o PT quer esquecer, em conversa com amigos revelada pelo “Estado de S.Paulo”. No desabafo, Dirceu se referiu a Lula e Dilma como omissos e covardes.

Dirceu está magoado com Lula, mas seu filho, não. Ao avistar o ex-presidente a caminho do plenário, o deputado Zeca Dirceu correu até ele e pediu para fazer uma selfie. Bem sucedido, levou para o álbum da família a foto de um Lula sorridente.

O encontro de Salvador também deixará registrado para a História o fim das produções hollywoodianas do partido governista e o início da fase de vacas magras. Por trás da nova filosofia de eventos, que, em ajuste fiscal doméstico, obrigou delegados a pagar com dinheiro do próprio bolso a água gelada que consumiam, encontra-se uma situação real de dificuldade de caixa.

Há grandes dívidas: o diretório de São Paulo tem um buraco de mais de R$ 50 milhões. Mas há ainda grande esforço de marketing para mostrar que o PT, abalado pelos escândalos de financiamento privado de campanhas, irá agora buscar sua sobrevivência financeira diretamente com os militantes. Não à toa, coube a Lula, sexta-feira, lançar a nova modalidade de arrecadação, via internet.

Nada disso, porém, impedirá que o partido continue se abastecendo prioritariamente com o dinheiro privado. Ao desistir de defender apenas o financiamento público, há duas semanas, o PT se acomoda à tendência do Congresso Nacional de permitir a participação direta do poder econômico na política, assim como se prepara para as eleições municipais de 2016, quando o destino do partido passará por teste ainda mais difícil.

Financiamento privado deve continuar
Os delegados do partido decidiram não decidir sobre isso e devolveram o abacaxi ao Diretório Nacional, como queriam os caciques. O que a maioria dos delegados ainda não sabe é que o diretório pretende descascá-lo da forma mais pragmática possível: abrindo exceção, provavelmente de dois anos, para que o dinheiro privado possa irrigar os cofres das milionárias campanhas para as prefeituras em 2016, a de Fernando Haddad, em São Paulo, à frente. Resta saber quais empresários estarão dispostos, após se conhecer a magnitude da bomba chamada delação premiada e o novo ímpeto da Justiça para prender os criminosos de colarinho branco, a contribuir tão generosamente com o partido que esteve no centro dos maiores e mais recentes escândalos.

Assim caminhou o PT em Salvador. Na mais colorida das alegorias, o impasse do partido podia ser vislumbrado no rodopiar de 13 baianas que, com roupas típicas, davam as boas vindas aos delegados. Toda vez que um novo grupo chegava, o coordenador da banda e da coreografia alertava: “É hora de rebolar”. Ao partido que, pressionado por suas bases sindicais, implora à presidente Dilma pelas 40 horas semanais de trabalho, caberia explicar às bailarinas do Rio Vermelho por que, naquela quinta-feira, a jornada, que começara às 9h, só iria terminar às 22h. Mas justificativas para tantas e tão fortes contradições é hoje pedir demais ao PT. Por lá, quase ninguém mais roda a baiana (Joaquim Levy, aliviado, que o diga). Só as exaustas moças e senhoras na porta do hotel de luxo. (Colaborou Sérgio Roxo)

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