• Se julgamento é político, avaliações também serão
- Valor Econômico
No futebol, nada impede que um time vença com um gol irregular. Pode ser de mão, em impedimento, um pênalti simulado, quando a bola não ultrapassa a linha ou até depois de cometer uma falta no adversário. Basta que o juiz valide o lance. Na súmula, o resultado, embora criticável, abominável, será legal. O erro do juiz pode ter como origem a displicência, a incompetência ou a má-fé. Juízes podem ter preferência clubística, ser influenciados pela pressão da torcida ou apenas querer aparecer. Costuma-se dizer que o desempenho de um juiz é tanto melhor quanto menos é notada a sua presença em campo.
Na política, a situação é pior e mais confusa: nem sempre há erros de arbitragem. Existem interesses e poder de organização. Há um marco legal - como a Constituição, os regimentos internos da Câmara e do Senado, e o possível apelo ao Supremo Tribunal Federal (STF) - mas em boa parte das disputas os juízes são os próprios jogadores - os partidos, os políticos - a despeito da crescente judicialização. É o caso do processo que pode apear Dilma Rousseff da Presidência.
É o que explica porque alguém como o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, consiga sobreviver, apesar das denúncias que o envolvem na Operação Lava-Jato. São manobras atrás de manobras para evitar a cassação pelo Conselho de Ética - entre elas a aceitação do pedido de impeachment contra Dilma. A permanência de Cunha desmoraliza a cadeira que ocupa, mas só confirma o argumento de Maquiavel para quem a política não é o reino da moral.
Na política, nem sempre o legal prevalece como fonte de poder. Dilma é a presidente, tem a caneta - cada vez com menos tinta - mas, na hipótese mais conservadora, dividiria com Lula a função, pela força do ex-presidente e pela fraqueza de seu governo, caso o padrinho político virasse um superministro. O plano foi frustrado quando magistrados, de fato e de direito, entraram em cena. O mais notável deles, o juiz Sergio Moro, responsável pela Lava-Jato, deu a punhalada mais forte no governo, quando Lula já lhe virava as costas para ganhar o foro privilegiado. Moro sabia que a divulgação dos telefonemas do petista o comprometeria judicialmente e o enfraqueceria politicamente. Desde então, o capital que resta a Lula - sua capacidade de liderança, de negociação, e a expectativa de poder que ele representa em 2018 - foi abalado pelo temor dos políticos de serem grampeados em conversa com o ex-presidente. A deterioração de sua imagem e a possibilidade concreta de ser preso atingiram o coração do petismo, atualmente incapaz de reagir à onda oposicionista.
Os protestos contra o impeachment foram grandes, mas chegaram depois e em reação à divulgação dos grampos e à sangria da base aliada, iniciada de pronto pelo PRB e pela antecipação da reunião do diretório do PMDB, que selou nesta terça-feira o rompimento com o governo. Moro, no mesmo dia, desculpou-se por tirar o sigilo que criou o fato determinante para a virada do jogo a favor da oposição. Errou o juiz. Mas o resultado é o que está valendo e deixou o governo em desvantagem para evitar, na falta de melhor palavra, o que poderíamos chamar de "golpeachment".
Como disse o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, no diálogo com o assessor do senador Delcídio do Amaral, José Eduardo Marzagão, "em política, tudo pode". Até mesmo, poderia-se acrescentar, um golpe parlamentar, "branco" ou "frio", como denominam estudiosos da democracia. Em conversa de dezembro do ano passado, uma semana depois de Cunha acolher o pedido de impeachment, um influente tucano - que já foi ministro e deputado federal - reconhecia, sem tergiversar, que as pedaladas fiscais, em sua opinião, não justificavam o afastamento de Dilma por crime de responsabilidade. Avalizava a acusação do governo: "É golpe sim, mas e daí?", devolvia.
A ideia de que a presidente precisa ser destituída, por qualquer meio, está presente no discurso da oposição desde a derrota nas urnas, em outubro de 2014. A não aceitação de resultado eleitoral é uma das marcas definidoras de sistemas em que a democracia está em risco. O jogo pelo poder fica sujo, como numa partida em que o juiz perde a autoridade e os adversários descambam para a violência. Perde-se o respeito. Abre-se espaço para o vale-tudo.
Por outro lado, impeachment não é golpe, afirmam seus defensores, porque está previsto na Constituição. É verdade, mas desde que se caracterize um crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República. A disputa semântica - se o afastamento é impeachment ou golpe - reside essencialmente aí. Mas não só, pois numa visão mais larga não poderia abstrair o contexto de extrema polarização política que se arrasta desde as eleições. Se o julgamento do impeachment, como se sabe, é eminentemente político - muito mais do que jurídico - as avaliações sobre seu resultado também são passíveis de politização.
Nenhum oposicionista admitirá que é golpe, assim como nenhum jogador reconhece quando comete um pênalti. Do mesmo modo, poucos governistas dirão que o impeachment é resultado de um longo processo de erros políticos e de um clima de mudança, que foi a palavra de ordem numa eleição vencida pelos representantes da continuidade. O que depõe contra a capacidade da oposição de ganhar no voto, mesmo quando a situação lhe é extremamente favorável.
A conquista e a manutenção do poder - por vias legais ou não - dependem sempre de apoio político. Há exatos 52 anos, em 31 de março de 1964, um governo legitimamente eleito era deposto por uma aliança entre políticos da oposição e os militares. O movimento teve respaldo de amplas parcelas da imprensa e da sociedade civil. Um tanque derrubava vários jogadores na grande área e era fácil classificar como golpe. O lance hoje é diferente, menos óbvio. O apoio político - de partidos, de movimentos sociais, do empresariado, da opinião pública - pode ser uma condição necessária, mas não suficiente para o respeito às regras básicas do jogo. A virada de mesa em 1964 tinha como justificativa a suposta ameaça comunista. Será que hoje não é corrupção e crise econômica?
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